A triste realidade de quem enfrenta a morte todos os dias para salvar vidas

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A imagem de um painel – o Anjo Australiano – pintado em uma parede em Melbourne, em que um profissional de saúde sustenta o planeta em suas mãos, ganhou as redes sociais ano passado como mais uma belíssima homenagem aos lutadores da linha de frente na pandemia de Covid-19. Pela coragem e dedicação acima do normal. 

Mas, a (justificada) denominação de heróis dada aos profissionais de saúde que, diariamente, enfrentam o perigo de contágio da doença e a dor alheia em último grau tem suas consequências no mínimo emocionais. Uma realidade que naturalmente não escapou aos trabalhadores do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) e a outrosservidores da UFRJ.

Medo de morrer, conflitos no ambiente de trabalho, incertezas do futuro e desconforto são algumas das causas do adoecimento mental dois profissionais de saúde 

Além de sobrecarregados de trabalho, muitos desses profissionais são  acometidos de um adoecimento silencioso. “A gente não está brigando somente contra a pandemia de Covid-19, mas com a pandemia da saúde mental, e isso tem gerado muitos afastamentos”, informou a enfermeira Vânia Glória que dirige a Divisão de Atenção em Saúde do Trabalhador (DAST), que faz parte da Coordenação de Políticas de Saúde do Trabalhador (CPST), assim como a Seção de Atenção Psicossocial (SAPS).

Segundo a diretora, a quantidade de pessoas que recorreu ao SAPS aumentou muito desde o ano passado, quando a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil. No mês de abril de 2020, 53 pessoas – mais do que o dobro de 2019 — buscaram atendimento. Em maio, o número chegou ao que foi considerado um pico: pulou para 80 pessoas. Em junho,  foram atendidos 36 servidores; em julho, 25, e em agosto 28 – número mais próximo da média pré-pandemia que estava em torno de 17 casos por mês, informou Vânia.  

Atendimento on line 

“Isso ocorre em hospitais do mundo todo e a saída é garantir que não percamos essas pessoas não só para a Covid-19, mas também que continuem mentalmente saudáveis”, disse ela, acrescentando que, no momento, não poderia divulgar outros dados, porém, destacaria alguns casos que ilustram a dimensão do problema. O atendimento da equipe multiprofissional da Seção de Assistência Psicossocial é feita on line. 

 “Percebemos, então, que pessoas que já estavam em tratamento se descompensaram. Mas o que foi mais prevalente foram pessoas que nunca sentiram nada em relação à saúde mental começarem a nos procurar”, conta Vânia, que estima um aumento na procura de mais de 50% da média de atendimentos. “A pandemia de Covi-19 tem sua nocividade e traz consigo outros riscos aos quais é preciso estar muito atento”, chamou a atenção a diretora da DAST. Confira: 

Medo de morrer

No início da pandemia, segundo relatou a enfermeira, além do desconhecimento inicial do que se estava enfrentando, as dificuldades que as unidades de saúde da UFRJ enfrentaram para aquisição de equipamentos de proteção individual, os EPIs, que sumiu do mercado; a falta de pessoal suficiente para atender a crescente demanda de pacientes, bem como de estrutura adequada para esses doentes geraram muita insegurança. Alguns profissionais não tiveram estrutura emocional para suportar o risco de contaminação. Estar dentro do hospital era assombroso para os que ficaram assustados com medo de adquirir a doença e morrer. 

Conflitos

Os conflitos nos ambientes de trabalho também contribuíram para a procura de ajuda na SAPS. “Os profissionais das unidades hospitalares sofreram muita pressão em termos da demanda. Não só por parte de chefias, como também de membros das equipes. O nível de estresse está muito alto até hoje, e a questão do conflito no trabalho começa a ficar exacerbado”, afirmou Vânia. 

Discriminação 

Houve ainda relatos feitos na SAPS, no início da pandemia, de discriminação nas ruas – pessoas mudavam de calçada para não passar perto de quem era identificado como trabalhador da saúde — e até em família. Outro elemento que afetou o emocional desses servidores foi a mudança radical da rotina em anos realizando o mesmo trabalho. 

Desconforto

Embora a maioria já tenha se adaptado parcialmente à nova rotina de trabalho, há ainda relatos de desconforto pelas marcas no rosto pelo uso contínuo  dos equipamentos de proteção, em relação às vestimentas de proteção volumosas e o uso de fraldas descartáveis para aguentar as muitas horas até o intervalo para troca da paramentação.

Incertezas

“Fora isso, tem a questão da assistência em si. Hoje há um pouco mais de segurança, mas no ano passado muitos se perguntavam quais seriam os procedimentos mais adequados” — uma insegurança que, segundo Vânia, permeou todos os segmentos da assistência nas unidades hospitalares. “E somaram-se a isso fatores externos preocupantes”, complementou, “como a política de saúde do governo federal que causam confusão e insegurança. E, por fim, a impossibilidade de cobertura das vacinas para todos da saúde”.

Central de apoio à saúde mental

O aumento na demanda por atendimento pôde ser identificado também em um projeto desenvolvido pelo Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ em conjunto com a CPST, a Central de Apoio à Saúde Mental dos Trabalhadores e Estudantes da UFRJ envolvidos no enfrentamento da Covid-19 (Ceate), coordenado por Claudia Vater.

É um canal de apoio psicossocial com um grupo de profissionais das áreas da saúde mental, saúde do trabalhador e bioética, informa a página do Ceate (http://nubea.ufrj.br/index.php/centraldeapoio). A central completou um ano no dia 22 de abril, e atua em parceria com a CPST. 

Solicitaram consulta no site (desenvolvido com apoio do Complexo Hospitalar e o NCE), em 2020, em torno de 1.400 pessoas. A Central está à disposição também dos trabalhadores terceirizados da UFRJ.

 

 

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