“Só foi possível um presidente da República como Bolsonaro por causa parcimônia com as questões relacionadas à ditadura”

Caroline Oliveira
Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 

A ideia de que a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, foi um regime político ameno e brando nasceu como uma narrativa para desresponsabilizar os responsáveis pelos crimes da ditadura. Como consequência, não houve uma ruptura em relação ao passado, o que possibilitou a continuidade da apologia à tortura e à ditadura nas atitudes, por exemplo, do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

“A forma de transição que o Brasil fez da ditadura para a democracia não foi uma ruptura. Foi uma transição completamente coordenada e controlada pelos próprios militares e, por isso, eles permaneceram no controle dessa narrativa com a justificativa de abalo à governabilidade do país. Isso convence praticamente todos os presidentes, de certa maneira até presidenta Dilma, durante os seus governos democráticos”, afirma Eugênia Gonzaga, procuradora da República e ex-presidente da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em entrevista ao Brasil de Fato.

Para Gonzaga, “só foi possível um presidente da República falando o que o Bolsonaro disse por conta de toda essa parcimônia que se teve com as questões relacionadas à ditadura. Imaginou-se que a ditadura poderia ser deixada de lado”.

Ela destaca que em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) votou contra a Lei da Anistia, de 1979, que perdoou os representantes do Estado acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar. “Eles passaram literalmente por cima dos corpos, dos corpos insepultos, das famílias que perderam seus filhos, seus entes queridos, achando que poderiam ter uma democracia depois disso.” Leia abaixo a entrevista completa:

 

Brasil de Fato – O que explica a ideia de que a ditadura militar brasileira foi uma “ditabranda”? A partir de quais elementos se produziu esse discurso?   

Eugênia Gonzaga – A forma de transição que o Brasil fez da ditadura para a democracia não foi uma ruptura. Foi uma transição completamente coordenada e controlada pelos próprios militares e, por isso, eles permaneceram no controle dessa narrativa com a justificativa de abalo à governabilidade do país. Isso convence praticamente todos os presidentes, de certa maneira até presidenta Dilma, durante os seus governos democráticos.

Essa história de que a ditadura brasileira foi a que menos matou no continente começa já com a lei que criou a própria Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que admite apenas algumas mortes, já que não tinha mais como negar. Certas famílias fizeram muita pressão política, acabaram admitindo que houve morte, mas não admitiram porque essas pessoas morreram. Nunca foram ditos os motivos dessas mortes.

Eles admitiram que morreram apenas aquelas pessoas que estavam ligadas a movimentos políticos. Para conseguir o reconhecimento, as famílias tinham que comprovar que essa pessoa tinha atuado, por exemplo, nos movimentos de resistência que existiram durante a ditadura. Esse é um critério completamente diferente do critério dos nossos vizinhos. Nenhum computou entre os mortos apenas as pessoas que eram militantes. Os outros países computaram todas as pessoas que morreram em razão daquele governo ditatorial.

Hoje, se a gente for falar em um número de mortos no país, a gente vai falar no mínimo de 10 mil pessoas. A ditadura Brasileira não teve nada de branda. A comissão de anistia já indenizou mais de 30 mil pessoas que, comprovadamente, individualmente, foram vítimas de tortura direta, fora as situações de tortura indireta. A ditadura foi generalizada. Toda delegacia no país se sentia no direito de “para preservar a pátria” fazer qualquer coisa. Então todo mundo torturava. A lesão a direitos era generalizada e isso se mantém até hoje.

Como esse discurso de “ditabranda” se relaciona com o genocídio indígena na época? 

Quando a gente fala em pelo 10 mil mortes, a gente já está levando em conta que entre esses, no mínimo, são cerca de 8 mil indígenas. Esse é um número que foi apurado pelo Conselho Mundial Indigenista e que conta nos relatórios anexos ao relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Infelizmente, o genocídio indígena sempre aconteceu nesse país e, durante a ditadura, foi um dos momentos em que se intensificou. Inclusive, a própria Comissão Nacional da Verdade apurou que há ordens que fossem tomadas as medidas necessárias caso houvesse resistência indígena durante a construção da Transamazônica.

Só que não há tantos registros. Ninguém sabe o que aconteceu nesse país durante esse período. É uma história que ainda precisa ser muito bem investigada e contada. Nós entendemos que esse foi um capítulo da Comissão Nacional da Verdade que manteve o critério de militância política e, por isso, acaba endossando esse número de 434 mortes. Mas deixa em aberto essa necessidade de continuidade de pesquisas e é isso que a gente precisa fazer no momento atual.

Como que esse discurso de “ditabranda” e omissão de um número expressivo de mortes se relaciona com o cenário atual de negacionismo e relativização de fatos históricos? 

Está tudo interligado. Eu acho que só foi possível um presidente da República falando o que o Bolsonaro disse por conta de toda essa parcimônia que se teve com as questões relacionadas à ditadura. Imaginou-se que a ditadura poderia ser deixada de lado. Foi feito um acordo mesmo. Está escrito na decisão do Supremo Tribunal Federal de 2010 que houve um acordo em 1979 que, para se retomar a democracia, nós deixaríamos de lado os crimes praticados pelos agentes da ditadura.

Eles passaram literalmente por cima dos corpos, dos corpos insepultos, das famílias que perderam seus filhos, seus entes queridos, achando que poderiam ter uma democracia depois disso.

Muito antes do Bolsonaro pensar em virar candidato, ele já praticou atos de apologia à tortura e à ditadura, mas nunca foi questionado sobre isso. Nada foi feito. Ele praticou inúmeros atos jurídicos que ensejariam a perda do mandato de presidente da República, mas isso não foi feito novamente. E foi chegando aonde chegou, o que culminou com 8 de janeiro.

Acredita que esse movimento de negar a proporção da ditadura e esses efeitos também se espalham para outros poderes, já que em 2010 o Supremo Tribunal Federal teve a chance de rever a Lei de Anistia, mas decidiu pela sua manutenção?  

O Judiciário está recheado de pessoas pertencentes a classes sociais que apoiaram a ditadura. Eu ouso dizer que pra muita gente desse tipo não só foi “ditabranda” como foi “ditaboa”, porque lucraram com isso. A imprensa, por grande parte do período, colaborou com a narrativa da ditadura.

Em terra que não tem lei, mas tem autoritarismo, ninguém está seguro, porque você pode achar que não é vítima de perseguição, mas amanhã pode ser. Se vigorassem no país as leis que aqueles defensores do 8 de janeiro queriam que vigorassem, eles agora presos não iam ter direito nenhum. Eles iam ver nas cadeias os mesmos cartazes que os perseguidos políticos da época viram: “Contra a pátria, não há direitos”.

As condutas de Bolsonaro, como a tentativa de extinguir a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, podem ser explicadas pelo fato de que o Brasil nunca elucidou os crimes cometidos durante a ditadura? O que motiva esse comportamento e esse discurso? Qual é o interesse? 

Acho que foi realmente uma política de desestruturar tudo aquilo que garantia esse estado social de direitos. A comissão é uma entidade de Estado criada por lei. Entra governo, sai governo, a comissão está lá. Não existe uma troca porque trocou o governo como nos ministérios, por exemplo. E isso incomodava muito. Então, como foi a forma de frustrar a comissão? Foi colocar ali uma maioria de pessoas que eram contra os objetivos da comissão.

A partir daí não se procurou mais corpos. Não se expediu mais nenhum atestado de óbito. Não se reconheceu mais ninguém como vítima da ditadura. Então a comissão já ficou paralisada desde então.

Eles também descobriram que uma brecha na lei determina a produção e entrega de um relatório final quando terminar de cumprir os seus fins. Eles correram para fazer isso no mês de dezembro. Aprovaram o relatório final a toque de caixa, numa reunião convocada às pressas.

Como é que se pode dizer que essa comissão cumpriu os seus fins, se nós temos entre esses 434 pelos menos 160 corpos não localizados? Não temos os atestados de óbito de todas essas pessoas. Mesmo assim, decretaram que a comissão tinha cumprido seus fins.

Ainda assim, toda e qualquer decisão da comissão deve ser ratificada por um decreto presidencial. A aprovação do relatório precisaria ser ratificada pelo presidente da República, que não fez isso. No dia 30 de dezembro, foi para os Estados Unidos. Mas, no dia seguinte, saiu um decreto aprovando o relatório, mas sem assinatura. A meu ver é completamente nulo esse ato de extinção e, por isso, acho que está muito fácil o atual governo reimplantar a comissão e nomear os membros.

Há a expectativa de recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos. Como a senhora, que já presidiu a comissão, acredita que deve se dar o trabalho a partir de agora, tendo em vista o desmonte que foi implementado durante o governo Bolsonaro? Além do trabalho dentro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, como o governo Lula pode e deve agir em relação ao negacionismo que há em relação a ditadura a partir das Forças Armadas, por exemplo?  

A gente espera sinais muito claros da Presidência da República. As Forças Armadas são órgãos muito importantes, mas que precisam colaborar, entregar esses documentos que contam nessa verdadeira história. Esses documentos existem.

Nós tivemos um leilão de uma declaração firmada em cartório de uma pessoa que participou dos atos de assassinato de Stuart Angel, que foi parar na mão de um leiloeiro. Esse documento estava firmado em cartório. Como é que isso foi parar lá? Como é que isso foi parar no leilão?

Esses documentos precisam ser entregues pelos militares, pelos aposentados que ainda têm eventualmente esse tipo de coisa. Não se pode mais negar às famílias o direito de saber exatamente o que aconteceu. Acho que isso tem que ser prioridade do governo em relação a todo tipo de desaparecimento.

Tem que ser um recado claro para essas graves lesões do passado e as graves lesões presentes, porque hoje continua desaparecendo gente hoje. O desaparecimento ainda é uma forma de ocultação dos crimes do Estado. Não vamos esquecer agora do assassinato do Bruno e do Dom. Era uma situação montada para o desaparecimento do corpo. É preciso que exista uma política clara de memória de verdade, de preservação das provas. Para isso, é preciso uma sinalização muito clara, principalmente do poder executivo.

Alguma novidade sobre a recriação da comissão? 

A informação que eu tenho do Ministério dos Direitos dos Humanos é que o decreto de restituição da comissão está pronto. Imagino que com essa viagem para a China e problemas de saúde do presidente da República, o assunto esteja entre as próximas pendências.

Esse ano haverá a terceira Caminhada do Silêncio pelas Vítimas de Violência do Estado. Qual é a expectativa? 

Nossos países vizinhos fazem as chamadas caminhadas do silêncio, nas quais as pessoas saem às ruas, normalmente no dia em que houve seus golpes militares levando velas, fotos e flores para homenagear a memória daquelas pessoas que morreram em virtude desses atos de barbárie. No Brasil, nós fizemos essa caminhada a partir de 2019, teve que ser interrompida com a pandemia, mas vamos fazer agora a sua terceira edição. Será neste domingo, dia 2 de abril, a partir de 15 horas, no Ibirapuera.

É uma “descomemoração” do golpe militar no Brasil. Desde a primeira caminhada, eu achei impressionante que as pessoas deixavam cartinhas e rezavam. Eu comentei isso com a familiar de um desaparecido e ela falou: “Eugênia, a gente não tem lápide, a gente não tem onde velar memória”. Então nesse tipo de oportunidade, as pessoas aproveitam para colocar sua espiritualidade para fora, para elevar seu pensamento, para falar em nome da pessoa.