Entrevista/Denise Gentil
Os servidores vão empobrecer’
A professora do Instituto de Economia da UFRJ Denise Gentil analisa para o Jornal do Sintufrj como fica a situação dos trabalhadores públicos federais caso se confirme na Câmara e depois no Senado a vitória do projeto do governo Bolsonaro que ataca a aposentadoria.
A proposta de emenda constitucional (PEC 6/2019) que muda o sistema previdenciário do Brasil foi aprovada, como se sabe, em primeiro turno por 379 a 131 votos (eram necessários 308 votos). O segundo turno da votação foi marcado para agosto.
- Qual o impacto da reforma da Previdência para os servidores públicos? Tem consequências muito graves, e avalio que será preciso fazer uma resistência rápida e forte, à altura das perdas que se anunciam ou pagaremos muito caro pela passividade. É necessário lembrar que os servidores já enfrentam duas ameaças, que são a demissão por insuficiência de desempenho e a redução da jornada de trabalho com redução salarial. Agora, mais perdas virão com a reforma, porque tudo será desconstitucionalizado.
- O que significa isso? Que, daqui para frente, tudo será decidido por leis ordinárias. Uma maioria simples pode aprovar as rodadas de mudanças de regras como o valor das aposentadorias, valor das pensões, tempo mínimo de contribuição para aposentadoria, alíquotas a pagar, base de cálculo do benefício, reajustes, acumulação de benefícios, e, portanto, haverá um estado permanente de reforma da Previdência, com perdas inimagináveis de direitos. Se ela passar do jeito que está, não haverá mais nenhum tipo de segurança jurídica. A reforma não é apenas muito cruel com os mais pobres. É muito cruel também com os servidores públicos. Estou falando dos agentes administrativos, médicos, professores, profissionais de várias áreas do Estado que compõem a classe média do país.
- Os servidores se aposentarão com que idade? Haverá elevação de 55 anos para 62 anos, para as mulheres (sete anos a mais para as mulheres é algo a ser registrado), e de 60 para 65 anos para os homens, acompanhando a regra geral do RGPS (Regime Geral da Previdência Social).
- Servidores levam suas vantagens pessoais para aposentadoria? Vamos ser realistas. Não haverá mais nada igual ao que existe hoje, nem para os que já entraram há muito tempo nem para os futuros servidores.
- Por quê? Porque o que será implantado quando a reforma entrar em vigor serão as alíquotas maiores, progressivas e alíquotas extras de contribuição previdenciária, que implicarão em redução de salários, pensões e aposentadorias. Ninguém escapará, e é isso que precisa ficar claro. Os servidores empobrecerão daqui para a frente. Além de um aumento da alíquota normal de contribuição previdenciária (que irá de 7,5%, para quem recebe o salário mínimo, até 22%, para quem recebe mais que R$ 39 mil), poderá haver taxas extras, que não se sabe de quanto serão. Tudo será regulado, veja bem, por lei ordinária, o que significa que o governo federal pode colocar o patamar das alíquotas onde quiser, a qualquer momento, com o objetivo de reduzir os salários e aposentadorias dos servidores, apoiado no (falso) discurso de combate ao déficit e de corte de privilégios, que sempre utiliza para angariar o apoio do resto da população.
- Com a reforma, quais as condições exigidas para o servidor se aposentar? Os servidores se aposentarão se preencherem os parâmetros exigidos de idade mínima, tempo de contribuição, tempo de serviço público e tempo no cargo. Quanto ao tempo de contribuição, será de 25 anos para homens e mulheres (cai, portanto, de 35 anos para homens e 30 para mulheres da regra atual, mas é maior que os 15 anos dos trabalhadores do setor privado), além da exigência de 10 anos no serviço público e 5 anos no cargo (que é a mesma condição já exigida atualmente).
- Regra vale para quem entrar depois? Servidores públicos que ingressarem depois da reforma vão aderir Funpresp (Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal) e se aposentarão pela média aritmética simples de todos os salários de contribuição, sobre a qual se aplica o percentual de 60%, acrescidos de 2% para cada ano de contribuição que vier a superar o mínimo de tempo de 20 anos. O valor da aposentadoria seguirá limitado ao teto do RGPS, somado ao valor que o servidor conseguir obter com sua poupança na Funpresp.
- O que é proposto como regras de transição para os servidores? A transição para os servidores que já estão no cargo e que ainda não cumpriram as condições para a aposentadoria será através do sistema de pontos, que soma o tempo de contribuição mais a idade mínima. Para entrar nessa regra, o servidor terá que ter cumprido o tempo de contribuição de 30 anos para as mulheres e de 35 anos para os homens. A idade mínima terá que ser de 56 anos para as mulheres e de 61 para os homens. Somando idade com tempo de contribuição, os valores começam em 86 pontos para as mulheres e 96 para os homens. Em 2022, a soma dos pontos será 87 e 97, e assim por diante.
O período de transição termina quando a pontuação alcançar 100 pontos para as mulheres e 105 para os homens, em 2033. Ao fim da transição, a idade mínima alcançará 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens. O servidor deve ter ainda 20 anos de serviço público e 5 anos de tempo de cargo para entrar na regra de transição. O valor do benefício será igual ao da regra geral de cálculo do valor da aposentadoria do RGPS, ou seja, 60% da média simples de todos os salários desde julho de 1994, mais 2% ao ano para cada ano de contribuição que superar o tempo mínimo de 20 anos.
- Como fica a situação dos recém-admitidos? A votação do primeiro turno na Câmara também estabeleceu regra melhor de transições para os admitidos após 2003 e antes de 2013, pois permite uma aposentadoria com 100% da média de todos os salários. Isso desde que o servidor cumpra a idade mínima de 57 anos para as mulheres e 61 para os homens e o pedágio de 100% do tempo de contribuição que falta para atingir 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens. Para entrar nessa regra, o servidor deve ter ainda 20 anos de serviço público e 5 anos de tempo de cargo.
Porém, para os que ingressaram no serviço público antes de 2003, a regra de transição torna possível acessar a aposentadoria integral e a paridade, se for cumprido o tempo de contribuição – 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens – junto com a exigência de uma idade mínima de 62 anos (mulher) e 65 anos (homem) na data da aposentadoria. Para entrar nessa regra, o servidor deve ter ainda 20 anos de serviço público e 5 anos de tempo de cargo.
Há, ainda, outra possibilidade de aposentadoria com integralidade e paridade para os que ingressaram antes de 2003 depois que ocorreu a aprovação em primeiro turno na Câmara. Esta exige o pedágio de 100% do tempo de contribuição que falta para completar 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens. Neste caso o servidor terá que ter idade de 57 anos (mulheres) e 61 anos (homens), 20 anos de serviço público e 5 anos no cargo.
- Em valores, quais são os limites máximos e mínimos da aposentadoria dos servidores? O limite mínimo é o salário mínimo e o máximo é o último salário (integralidade), mas este depende do período de ingresso no serviço público e do cumprimento das regras de transição.
- Os servidores poderão acumular aposentadorias? Sim, mas vai haver perdas. O acúmulo de aposentadorias de professores e de profissionais de saúde não tinha limites. Se a reforma for aprovada, passará a ter. O servidor pode ficar com 100% do benefício de maior valor junto com um percentual do benefício adicional. Esse percentual será de 80% do segundo benefício, quando o valor for igual a um salário mínimo; 60%, quando o valor for maior que um salário mínimo e menor que 2 salários mínimos; 40% do valor que exceder 2 salários mínimos até 3 salários mínimos; 20% do valor que superar 3 salários mínimos até 4 salários mínimos; e 10% do valor que exceder quatro salários mínimos.
- Como ficam as pensões? Atualmente, o beneficiário recebe até 100% do teto do RGPS, acrescido de 70% da parcela da remuneração que ultrapassa esse limite. Com a reforma, esse valor será de apenas 50%, mais 10% por dependente. Há situações em que o servidor receberá um valor muito baixo. A PEC não garante 1 salário mínimo de pensão por morte. O texto só garante 1 salário mínimo nos casos em que o beneficiário não tenha outra fonte de renda.
Haverá uma dupla redução no valor das pensões. Primeiro, o valor da aposentadoria cairá para 60% da média de todos os salários. Segundo, o percentual atribuído ao valor da pensão também será menor. Isso resultará em um benefício muito mais baixo do que é hoje. Um exemplo que não é meu, mas que é muito citado nas redes sociais, diz o seguinte: uma pessoa que ganhava, em média, R$ 2.000, se aposentará com um benefício de R$ 2.000 X 0,60 = R$ 1.200. A pensão para a viúva ou viúvo será de R$ 1.200 X 0,60 = R$ 720, ou seja, 36% do salário do contribuinte.
Para quem deixar uma viúva com 1 filho menor, o cálculo fica: 70% de 60%, ou seja, aproximadamente 42% do salário médio. É evidente que haverá um empobrecimento das famílias no Brasil, e isso é uma grande crueldade. O que se economizará será muito pouco, mas custará muito para as viúvas e crianças.
Quem já recebe pensão não terá o benefício alterado.
- Quais os tipos e formas de contribuições previdenciárias para os servidores? As contribuições se basearão em alíquotas crescentes e progressivas por faixa salarial, que vão desde 7,5% sobre o salário mínimo; depois dessa faixa vamos ter alíquotas de 8,25% a 9,5% para faixas de salários entre R$ 2.000 e R$ 3.000; de 9,5% a 11,68% para faixas salariais acima de R$ 3.000 até R$ 5.839,45; e de 11,68% até 12,86% para faixas salariais entre R$ 5.839,46 até R$ 10.000, e assim por diante, com alíquotas que variam de 12,86% até 14,68% para faixas salariais entre R$ 10.000,01 e R$ 20.000. É preciso também lembrar que, além dessas alíquotas, pode haver alíquotas extras, criadas por lei ordinária.
Tudo isso é transitório e altamente instável. O governo estipulará a tributação por lei ordinária, o que torna a renda do servidor muito vulnerável e imprevisível. Penso que haverá um empobrecimento dos servidores, e as pessoas não parecem se dar conta disso, porque não se mobilizaram para a luta.
- Acabou o abono de permanência? Não acabou. Para os servidores que já recebem e para os que já cumprirem as condições para se aposentar e continuarem trabalhando, está garantido o pagamento de um abono de permanência equivalente ao valor da contribuição previdenciária, mas isso poderá mudar por lei federal.
Para os servidores que ingressarem após a reforma, o abono de permanência é uma possibilidade, a ser regulamentada pelo governo, e poderá ter o valor máximo igual à da contribuição previdenciária.
- Quem vai administrar a Funpresp? É um dos maiores fundos de pensão da América Latina e que hoje é administrado por entidade fechada e também pública, ou seja, por entidade não de mercado e sem fins lucrativos, em que os servidores participam da gestão e respeitam os princípios da administração pública, de legalidade, impessoalidade, moralidade etc. Atualmente, a Constituição de 1988 determina que tenha natureza pública. Da forma como está proposto na reforma da Previdência, eu entendo que há permissão para que a administração seja feita por entidades privadas, onde o servidor se tornaria uma espécie de cliente compulsório, que acabaria condicionado a fazer a adesão de sua poupança a essa entidade, sem a possibilidade de escolha. É uma privatização definitiva.
Uma tendência dessas instituições privadas de previdência é adotarem altas taxas administrativas, fazerem investimentos com foco em sua própria lucratividade e visando resultados de curto prazo, mais arriscados. Uma parte dos intérpretes dessa reforma acha que ela eliminará o caráter público das fundações de previdência complementar dos servidores.
Então, penso que há dois perigos para a Funpresp: 1) ser aberta para estados e municípios; e 2) ser entregue para a gestão por entidades de previdência aberta, geridas por bancos, nacionais ou internacionais.