“Resistir e transformar a dor em potência”  

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“A gente não discute racismo numa universidade totalmente branca. Mas, hoje, quando vou à UFRJ dar palestras vejo uma universidade preta. Mesmo por cotas, fico hiper feliz”, disse Vilma Piedade,  professora, escritora e colunista do Canal Pensar Africanamente e do Coletivo Putaria, uma das palestrantes de quinta-feira, 16, da mesa “Dororidade: feminismo, racismo e branquitude”, no terceiro dia do Festival do Conhecimento da UFRJ.

Ex-aluna da instituição, quando entrou em 1974 para cursar Letras — “um privilégio porque era preta, da classe média e filha única” –, ela saudou emocionada o evento: “Estou feliz pelos 100 anos da Universidade Federal do Rio de Janeiro viva e de excelência”, e acrescentou: “Precisamos ocupar a academia, sim, porque ela também é nossa”. Na apresentação da palestrante, Annyelly Nascimento destacou que Vilma é uma “intelectual que abrilhanta a cena literária nacional e internacional”.

Dororidade e Sororidade

“O conceito de dororidade não se contrapõe ao de sororidade, que  apresenta a ideia de irmandade. “Sororidade é um conceito que ancora o feminismo desde o surgimento. Dororidade veio dialogar com sororidade, um conceito não anula outro. Para mim, dororidade nasce da minha inquietude em relação à sororidade para contemplar as mulheres negras. Crio primeiro o vocábulo e queria saber o que é isso. O que acontece com a gente quando 56% da população brasileira é negra, mas a outra parte, 54%, fica com o dobro de oportunidades? Dororidade surge frente a sororidade não dar conta da nossa pretitude. Estou inaugurando o conceito”, constatou Rute Costa, professora do curso de Nutrição da UFRJ – Macaé, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena e vice-coordenadora de Extensão daquele campus, palestrante e mediadora do debate.

Vilma é autora do livro “Dororidade”, publicado em 2018, portanto, foi ela a criadora desse novo conceito feminista, cuja centralidade está na luta antirracista. Segundo Rute, um novo e ampliado olhar para o feminismo a partir desta centralidade. “Dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as mulheres pelo machismo. Mas nós, mulheres pretas, temos a dor provocada pelo racismo”, completa a escritora.

Dororidade, segundo Vilma, refere-se também a transformar a dor em potência: “é o que estamos fazendo, que é o que você faz na universidade. É isso o que eu faço, o que a juventude está fazendo, o que está acontecendo nesta academia, Nós vencemos. Quando transformamos a dor em potência é porque rompemos com o determinismo histórico que nos colocava na cozinha, por exemplo. Continuamos”.

“Somos silenciadas pela história pelo racismo, pelo sexismo. São 132 anos de abolição entre aspas e a gente luta por equidade. Nessa luta pós-abolição ainda temos os piores índices sociais, culturais e ambientais”, disse Vilma, que citou dados do IBGE de 2019: 13 milhões e meio vivem abaixo da linha de pobreza. Desses, 75% são negros. “Isso não é por acaso”, frisou.

Mais desigualdades

No Brasil, chama atenção Vilma, há outras situações e lugares ruins, como por exemplo, na pirâmide do emprego, em que mulheres negras estão com menores salários. “E ainda se diz que o Brasil não se considera um país racista. Não há racismo, mas nós sofremos racismo a toda hora, no cotidiano. Quando a gente diz vidas negras importam, quando vemos o episódio macabro do George Floyd (afro-americano morto sufocado em maio por policial branco nos Estados Unidos), e em São Paulo uma senhora negra com uma bota no pescoço, a gente tem dificuldade de respirar. Mas temos dificuldade de respirar há muito séculos, só que agora a coisa está mais escancarada”, afirmou, acrescentando que “não basta não ser racista, é necessário fazer a luta antirracista”.

A escrita, disse a escritora, também traz a marca das aberrações que o racismo imprime até hoje. O racismo se expressa também no arcabouço linguístico. No léxico, lembra ela, a palavra preto ainda é descrita como escravo liberto, apontando todo conceito que trazem outras expressões como mercado negro, situação preta. E cita sinônimos de preto como encardido, ladino, infeliz, enquanto ao conceito de branco é associado o de alegre, feliz. “Nossa língua é do colonizador”, constatou.

Ela lembrou autoras negras premiadas para demonstrar que publicar é um ato político e a produção que está surgindo é o que de mais importante há atualmente. “Nunca ocupamos tanto espaço de poder como agora, principalmente na literatura”, citando autores negros importantes no cenário nacional. “Quando somos sujeito da história, deixamos de ser objetos de estudo para ocupar estes espaços (fala se referindo a academia), como professora universitária no mestrado”, observou.

Um compromisso

Para ela, o antirracismo deve ser um compromisso de toda sociedade, lembrando que depois da morte de Floyd, muitos artistas estão abrindo espaço para essa luta. “Porque a branquitude precisa ouvir, se colocar como aliada, a gente tem que ter brancos aliado nessa luta”,  apontando que a educação é da maior importância para a desconstrução do racismo.

Dor e potência

“A gente tem que resistir e transformar a dor em potência, se virar e dizer: conseguimos! Você está dentro da universidade! Este Festival do Conhecimento da UFRJ é uma honra para mim. Eu consegui e me orgulho de ter estado na federal, de transformar. Não quero que seja só um privilégio, que as cotas ampliem e seja para essa juventude toda. A gente tem que resistir no transformar dor em potência!”, concluiu.

Vilma apresentou o vídeoclip com o Rap “Dororidade” (no Youtube https://youtu.be/fmJAWeXIhDUdo) do projeto #AfroGrafiteiras, da rede NAMI (rede de mulheres que usa artes para promover direitos), de formação em arte urbana com foco na expressão e promoção do protagonismo de mulheres afro-brasileiras. Mostrou Também imagens do lançamento do Mural Dororidade, da artista Panmela Castro, exposto na Rua do Lavradio, quando a Lei Maria da Penha completou oito anos.

A música e vídeo são uma homenagem a todas às mulheres brasileiras e onde a dor do racismo e machismo é transformada em luta e força. “Somos irmãs por dores, por perdas, somos irmãs de ideais, somos AfroGrafiteiras”, diz o verso. O painel com o mesmo nome (seu lançamento está no documentário Somos um só, exibido na Netflix), mostra a imagem de duas mulheres unidas pelos cabelos, ou seja, pelas ideias. A composição, explicou Vilma, não fala só sobre a dor, mas como esta se transforma em potência.

 

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