A Comissão de Heteroidentificação da UFRJ, depois de seis meses de trabalho, concluiu as avaliações do primeiro semestre deste ano. De 2.323 candidatos autodeclarados pretos e pardos aprovados para ocupar vagas dos cursos de graduação sob o critério das cotas raciais, 65,9%, isto é, 1.381, foram considerados aptos. Esse número aumentou para 1.531 após o julgamento dos recursos.
Segundo o presidente da Comissão de Heteroidentificação, o professor Marcelo de Pádula, é uma experiência inédita na UFRJ a implantação desta comissão para confirmação das autodeclarações dos candidatos que concorrem às vagas PPI – pretos, pardos e indígenas.
“Na minha percepção, digo que a UFRJ jamais será a mesma universidade. Ela abre as portas agora e recebe de braços abertos não só esses estudantes, mas também a política de cotas raciais”, atesta o professor, que disse que a sua experiência foi um grande aprendizado.
Para ele, um branco presidir uma comissão para avaliar a autodeclaração de um candidato negro ou pardo foi um ato simbólico.
“Do ponto de vista pessoal e institucional é um exemplo. Foi não só didático e terapêutico. Para cada um dos servidores da UFRJ, inclusive estudantes também, experimentar a oportunidade de estar numa comissão de heteroidentificação, passar por um curso específico para isso, é um processo formador.”
A comissão é formada por professores, técnicos-administrativos e estudantes. São 54 integrantes, divididos paritariamente, e sob o critério de gênero e raça.
Desconstrução
Marcelo de Pádula afirma que esse processo de formação envolve “a gente reconhecer enquanto branco o próprio racismo e começar um processo de desconstrução”. O professor ensina que “os brancos precisam encontrar com o seu racismo e começar esse processo, que não é óbvio e nem evidente”.
Para a coordenadora da Câmara de Políticas Raciais da UFRJ, a técnica-administrativa Denise Góes, o trabalho da comissão dirimiu dúvidas na avaliação do fenótipo dos candidatos, principalmente pardos, e ratificou o direito à vaga daqueles realmente inseridos no critério racial.
“O trabalho da comissão se constituiu num importante instrumento, através das Comissões de Heteroidentificação, que permitiu que as vagas oriundas da Lei de Cotas fossem para quem atende aos critérios fenotípicos preconizados pela Orientação Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018”, afirma.
Esta orientação normativa regulamentou o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, instituindo, assim, as comissões de heteroidentificação para avaliação sob o critério fenotípico dos candidatos.
E, segundo Denise, para além do número de aptos ou não à vaga, todo o processo que envolve o trabalho da Comissão de Heteroidentificação desperta e aprofunda o debate acerca da discussão racial no interior da universidade e da ocupação dos espaços.
“Foi uma experiência exitosa. Pudemos perceber o quanto os candidatos pretos e pardos tomaram para si o direito conquistado, advindo de uma luta de décadas do Movimento Negro no Brasil. É um direito, uma dívida do Estado brasileiro, e não uma esmola como muitos preferiram compreender. A desconstrução da meritocracia enquanto um entrave foi uma vitória do Movimento, e esse processo consolidou a assertividade dessa política pública de democratização do acesso ao nível superior.”
Para a estudante de biologia Dayane Alves, que entrou em 2019 pelo sistema de cotas e participou do trabalho de heteroidentificação, os negros estão ocupando seu lugar de direito e de fato na universidade pública. Vale lembrar que a Comissão de Heteroidentificação foi criada na UFRJ em 2019 por demanda dos coletivos negros de estudantes para apurar as centenas de denúncias de fraudes no sistema de cotas raciais.
“Como alunos negros, não temos representação institucional na universidade. Nem temos docentes negros, praticamente. Considero os aprovados na comissão dentro do critério racial um número significativo, e isso para mim é o resultado de que os alunos negros estão sendo protagonistas de sua história. E ocupando vagas a que têm direito nos cursos mais concorridos. Esta comissão de heteroidentificação ampliou a possibilidade de os verdadeiros cotistas adentrar à universidade pública”, comemorou a estudante.