Kauan Alves de Almeida, 16 anos, queria ser cantor de funk. Na manhã de Natal do ano passado, o sonho deixou de existir após o jovem ser assassinado com uma bala no rosto por policiais militares em uma rua na favela Alba, zona sul da capital paulista. Como Kauan, oito a cada dez pessoas mortas pela polícia em 2019 eram negras segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020.
Das 6.357 vítimas de violência policial no ano passado, a maior parte, 99% era formada por homens. O documento, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), levou em conta boletins de ocorrências fornecidos por 23 estados — apenas Acre, Amapá, Amazonas e Rio Grande do Norte não encaminharam dados. No comparativo com o número do ano anterior (6.175), houve um aumento de 2,9% na quantidade de mortos por agentes do estado.
“A gente está olhando para os números e percebendo que, enquanto o Brasil faz de conta que não tem problemas raciais, um racismo estrutural que organiza as relações sociais do país, quem morre e quem mata são exatamente proporcionalmente muito mais negros do que brancos”, avalia Renato Sergio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Além da raça, as vítimas de intervenção policial guardam outra semelhança com Kauan. Três a cada quatro eram jovens, com idades entre 15 a 29 anos:
- 23,5% tinham entre 15 e 19 anos;
- 31,2% tinham entre 20 e 24 anos;
- 19,1% tinham entre 25 e 29 anos.
É cruel perceber, na prática, que as vítimas de todos os lados desse confronto que não faz o menor sentido são as mesmas. Entre os policiais e entre a população como um todo nós estamos matando negros.”
Renato Sergio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Em 2019, 74,4% das 39.561 vítimas de homicídio eram negros. O índice sobe, para 79,1% quando o autor do assassinato foi um policial. Para Amanda Pimentel, pesquisadora do FBSP, a matança de negros pelas forças policiais é algo que virou parte da cultura policial.
“Quando a gente tenta pensar as mortes violentas, em especial as da polícia, isso se dá tanto porque vivemos em um país de herança escravocrata, quanto porque a raça incide nesses eventos violentos”, disse ao UOL.
Segundo o Anuário, a maioria dos policiais assassinados (65%) era preta ou parda. Somente no ano passado, foram registradas as mortes de 172 policiais civis e militares — 62 enquanto trabalhavam. O número pode ser maior, já que o estado de Goiás não apresentou informações, segundo o Fórum.
Tudo isso demonstra que, embora não assuma o racismo, a prática policial possui categorias raciais que usam para reconhecer, como cor da pele, vestuário, fala e território que se vive.”
Amanda Pimentel, pesquisadora do FBSP
Para cada policial assassinado no Brasil em 2019, 37 pessoas foram mortas por policiais,
de acordo com o Anuário. Como base de comparação, o FBI, nos Estados Unidos, avalia como “aceitável” a proporção de um policial morto a cada 10 civis mortos por policiais. Isso, segundo especialistas em segurança pública, aponta que a polícia brasileira mata mais do que deveria.
Professor de Gestão Pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas), Rafael Alcadipani também vê na discriminação racial um fator preponderante para a quantidade de negros mortos pela polícia.
“Os dados mostram como o Brasil é um país violento, principalmente contra a população negra. Esse racismo se manifesta nesses números”, pontuou.
Não dá para falar de segurança pública sem falar da segurança pública no contexto racializado. Não dá para fugir desse debate.”
Renato Sergio de Lima
Preconceito
O argumento da pesquisadora Amanda Pimental, de que vestimentas e território levam policiais a mirar jovens negros, é ecoado pela cabeleireira Jade Alves de Paula, 41 anos, para explicar a morte de seu filho. Para a mãe de Kauan, o jovem foi assassinado “por ser negro e andar como ele andava”.
Ela conta que o adolescente chegou a sua casa às 8h50 naquele 25 de dezembro com a namorada após passar a madrugada curtindo em um baile funk na comunidade. Tomou banho e saiu novamente para tomar açaí. Foi quando chegou um carro suspeito, seguido pela polícia. Kauan foi alvejado pelos agentes.
A versão dos policiais é diferente. Segundo eles, um trio teria roubado um carro nas imediações da estação Conceição do Metrô por volta das 9h. Este seria o mesmo veículo que passou pela casa de Jade. Após receberem voz de prisão, os três fugiram. A perseguição se estendeu por cerca de dois quilômetros até chegar à Favela Alba. Os homens teriam descido atirando, o que obrigou os PMs a revidar.
Ele era perseguido desde os 14 anos pela forma como andava e por ser negro. Ele tinha o sonho de ser MC, então andava com correntes, boné torto. Tenho testemunha que viu que meu filho levantou as mãos e dizia ‘eu não estou com nada’, mas os policiais atiraram.”
Jade Alves de Paula, cabeleireira
Procurada pela reportagem do UOL para informar a situação dos policiais envolvidos, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo não se pronunciou sobre o andamento do caso. Se enviado, o pronunciamento será incluído nesta reportagem.
A família de Kauan Alves de Almeida é acompanhada pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, coletivo que tem como finalidade atuar em territórios em que a violência policial é cotidiana. Além de acompanhar os casos e cobrar que o Ministério Público designe promotor para atuar nos inquéritos, a Rede oferece auxílio psicológico a familiares das vítimas.
Articuladora da rede e pesquisadora do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais, Marisa Feffermann diz procurar respostas para “qual motivo um profissional no exercício do seu trabalho mata um adolescente de 16 anos às 9h da manhã do dia 25 de dezembro”.
“Para a sociedade e especialmente a polícia, existe uma cor do considerado sujeito criminoso, como nos tempos de Lombroso [psiquiatra italiano]. Para o braço armado do estado, este sujeito suspeito é o negro. Essa suspeição se torna certeza se o negro for morador de territórios vulnerabilizados”.
População carcerária
Se nas ruas os negros são as maiores vítimas de assassinatos, eles também fazem parte da maior parcela da massa carcerária brasileira. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 755.274 pessoas estavam privadas de liberdade no ano passado.
Dessas, 66,7% eram negras e 32,3% brancas. No ano de 2005, o total de presos negros representava 58,4% da população carcerária total naquele ano.