Feminicídio: 74% das mulheres mortas no RJ eram mães, aponta pesquisa

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Fonte: Por Lilia Teles, G1. Publicado em 3/11/2020

Monitor da violência – feminicídio — Foto: Editoria de Arte/G1

Um levantamento feito pelo Núcleo de Pesquisa de Gênero, Raça e Etnia da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro mostra que a grande maioria das vítimas de feminicídio no estado eram mães e que os agressores tinham vínculo íntimo com elas.

O RJ1 teve acesso em primeira mão aos dados da pesquisa, que analisou processos de feminicídios julgados pelas Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Segundo o levantamento, as vítimas são, em sua maior parte, mulheres pardas e brancas, com idades entre 25 e 45 anos e que 74% das mulheres assassinadas eram mães.

A maior parte dos agressores também está nessa faixa etária, entre 25 e 45 anos. Mais da metade deles, segundo a pesquisa, usava algum tipo de droga ou medicamento. Além disso, 90% dos agressores tinham vínculo íntimo com as mulheres que mataram, sendo que 39% deles moravam com elas.

A juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Adriana Ramos de Mello, que esteve à frente da pesquisa, enfatizou que os dados do levantamento devem servir de base para a criação de mecanismos de prevenção à violência contra as mulheres.

“O feminicídio, ele é um contínuo, um processo de violência, que pode começar com uma violência verbal, uma ameaça, às vezes, um xingamento, um insulto”, apontou.

Segundo a magistrada, é preciso buscar ajuda no primeiro sinal de violência doméstica para se poder evitar a morte da vítima.

“A gente diz sempre que o feminicídio é uma morte evitável, uma morte que não poderia ter acontecido”, enfatizou a juíza.

Por trás dos números, tragédias familiares

Somente nos últimos quatro anos, mais de 300 mulheres foram assassinadas no estado do Rio de Janeiro vítimas de feminicídio, crime que caracteriza quando uma mulher é morta pelo simples fato de ser mulher.

No Brasil, três mulheres são assassinadas por dia, vítimas do feminicído. Isso significa que uma mulher é morta a cada sete horas. A agressão é ainda mais frequente – acontece a cada dois segundos.

Cristiane está entre as vítimas do feminicídio no Rio de Janeiro. Ela foi morta a facadas pelo ex-marido em 2015, ano em que foi criada a lei do feminicídio no Brasil. A filha mais velha, Yasmin, lamenta a falta da mãe.

“Nós éramos muito próximas. A gente conversava bastante, eu falava muito da minha vida pra ela, ela falava muito da vida dela pra mim”, contou.

Yasmin era a única filha do primeiro casamento. Cristiane teve outros dois filhos com o segundo marido, Edson Alves Luís. E foi pelas mãos dele que os três irmãos ficaram órfãos de mãe.

“As crianças estão crescendo e ela não está aqui para ver. Mas eu tento levar da melhor forma possível. Até por eles, porque eu sei que eles sofrem bastante”, enfatizou Yasmin.

Cristiane foi morta a facadas pelo ex- marido, inconformado com a separação, um mês depois de ter sido espancada por ele.

“Ele hackeou o Facebook dela e fez um perfil fake, se passando por um homossexual querendo ser amigo dela. E aí minha mãe, muito inocente, começou a contar tudo da vida dela e foi aí que ele descobriu que ela estava começando a se envolver com outra pessoa. E ele foi até o apartamento e matou ela a facadas”, contou Yasmin.

A jovem órfã destacou, ainda, que a mãe sequer teve chance de buscar socorro. “Morreu na hora. Em relatos, em depoimento dele na delegacia, ele disse que só parou [de esfaquear Cristiane] quando ele viu que ela já estava morta”.

Dor transformada em luta
Yasmim contou que o assassinato da mãe mudou completamente a sua vida e que ela passou a usar a sua dor para tentar ajudar outras mulheres.

“A Yasmim antes achava que vivia numa vida maravilhosa, que nada podia acontecer dentro da minha família. Quando eu enterrei a minha mãe, eu renasci de novo, eu renasci mais forte, e tudo que eu faço hoje é por ela”, disse.

Para conclusão do curso de jornalismo, Yasmim produziu um curta metragem que retrata mulheres que sofreram com parceiros violentos, em relações abusivas.

“Eu entrevistei quatro mulheres que passaram por diferentes estágios de violência, até chegar no grau máximo, que é o feminicídio, como o caso da minha mãe. Ele [o curta metragem] foi cinco vezes premiado, rodou o Brasil inteiro, e através dele eu consegui chamar a atenção de muitas mulheres. Em alguns estados em que eu visitei, que eu fui junto com o documentário em festival, as mulheres me abraçavam me agradeciam pelo trabalho que eu estava fazendo”, contou.

Por conta da tragédia familiar, Yasmim disse ter percebido que é uma falácia a tese popular de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, e passou a trabalhar para ajudar as mulheres vítimas de agressão doméstica.

“Quando a gente vê [um caso de agressão] a gente tem que se meter sim, porque a gente pode estar evitando a morte de alguém”, enfatizou.

Morte 15 dias após ser espancada
Faz quase um ano que Valdir e de dona Alice convivem com a dor de ter tido uma filha assassinada, em um caso de violência que, para eles, não tem explicação. A suspeita é que a filha deles, Vanessa, tenha morrido por causa de uma longa sessão de espancamentos. O agressor seria o companheiro dela, Douglas da Silva.

“Ele deixou ela dentro de casa, que a casa deles não tinha porta, era só um pano, e falava para o pessoal do entorno que ela estava passando mal. E os dias foram se passando, se passando. Chegou um certo dia que uma das tias dele, achando estranho, entrou dentro da casinha onde minha filha morava. Vendo o estado que ela estava, ligou para essa sobrinha que foi lá pra socorrer a minha filha”, lembrou Valdir.

Os pais de Vanessa acreditam que ela estava machucada, presa em casa, há pelo menos uma semana quando a tia do companheiro chamou por socorro. A única testemunha do que teria ocorrido é o neto deles, que só tem 8 anos de idade e acusa o pai de ter batido na mãe.

“Eu fui atrás junto com a minha namorada e a comadre da minha filha que sabia onde essa irmã dele morava. Chegando lá, eu encontrei a minha filha em cima de uma cama com o olho inchado e roxo, meu neto do lado. Eu perguntei ao meu neto ‘o que aconteceu com a sua mãe?’. Ele olhou pra um lado, olhou pro outro, e falou assim ‘vô, meu pai bateu muito na minha mãe’”, contou Valdir.

Os pais não sabiam que Vanessa estaria sendo agredida por Douglas. O neto, traumatizado, deu detalhes das agressões, que seriam constantes.

“Meu neto fala que foi muito na cabeça, inclusive meu neto fala que ele batia nele na cabeça mas aí meu neto fica com medo porque ele sabe que ele está solto então tem medo dele. Então, ele fala muito pouco. Ele se tornou aquela criança, assim, que quer ficar isolada, não quer ficar mais na rua, não fica mais no meio de ninguém, só quer ficar mais com a gente dentro de casa”, destacou dona Alice.

Vanessa foi levada pelos pais ao hospital com um olho roxo. Mas, os piores ferimentos eram internos e acabaram levando ela à morte. Vanessa morreu no Hospital de Saracuruna, em novembro de 2019, 15 dias depois de ser espancada em casa.

“O laudo do IML diz que a causa da morte foi hemorragia das meninges por ação contundente. Esse foi o laudo expedido pelo IML de Caxias”, enfatizou o pai.

Vanessa tinha de 23 anos. Ela já tinha tentado se separar do companheiro, mas foi ameaçada por ele, e voltou. Douglas chegou a ser preso, com base na Lei Maria da Penha, e ficou dois meses na cadeia, mas aguarda o julgamento em liberdade.

“Em liberdade por quê? Não sei porque, o crime que ele cometeu é hediondo por motivo torpe, qualquer juiz ou Ministério Público já manda encarcerar”, questiona Valdir.

“Só o que queremos é Justiça, para que outras pessoas não venham a passar o que a gente está passando, porque ele fez com a minha filha, quem dirá que ele não vai fazer com outra. Já que não aconteceu nada com ele até agora por causa da minha filha, ele pode vir a fazer com outra”, cobrou a mãe de Vanessa, dona Alice.

O Ministério Público do Rio disse que a Polícia Civil não anexou ao inquérito remetido à promotoria os depoimentos de Douglas da Silva, acusado do assassinato, nem outras peças importantes, como o laudo da necropsia.

Já a Polícia Civil disse que está cumprindo as diligências pedidas pelo MP e que o caso vai ser concluído em breve. A defesa de Douglas da Silva não foi localizada pela reportagem do RJ1.

 

 

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