Matéria retirada do site Geledés.
Era 1983, em Brasília (DF), uma mãe preta leva a filha, recém-nascida, para se registrar. Não se questionava a cor dos filhos. Isso era definido por um rápido olhar do profissional do registro: a criança, sem ausência de melanina na pele suficiente para ser declarada branca e com menos que o mínimo para ser vista como criança preta, é então taxada de parda. É aí que começa nossa jornada em busca de identidade.
O termo “pardo” surge durante a colonização espanhola entre os séculos 16 e 18, com a economia baseada na escravidão. Para o IBGE, ele se aplica a pessoas com mescla de cores, seja essa mulata (entre brancos e negros), seja cabocla (entre brancos e ameríndios) ou cafuza (entre negros e indígenas).
É nessa mistura de origens étnicas, fenotípicas e culturais que estão 42,7% dos brasileiros, o que torna difícil a identificação de nosso povo com base nas origens étnico-culturais, já que o termo pardo agrega todas as miscigenações feitas no país desde o processo de colonização até o projeto de “embranquecer” a população com os investimentos feitos para trazer os imigrantes europeus para cá.
Mas alguém pode pensar: o que isso tem a ver com a garotinha parda? Adotada por uma família de mãe e irmãos brancos e pai preto, na escola, ela aprendeu rápido. Sempre falavam da diferença de pele entre ela e os seus, e desconfiavam de sua origem não branca: aos seis anos, ela descobriu a adoção; aos oito, a professora, ao lidar com a praga de piolhos, enquanto derramava creolina em seus cabelos, na frente de toda a turma, dizia: “tem cabelos ruins como esses que não adianta remédio normal, tem que ser esses que matam carrapato em bicho para ver se funciona”; apesar de humilhada e triste, ela achava que a culpa era do cabelo ruim; se fosse branca, teria cabelos lisos.
No Brasil, o quesito raça/cor variou nos censos. Em 1872, no primeiro recenseamento realizado, havia as seguintes classificações: branco, preto, pardo (que aqui era lido como a mistura branco/preto) e caboclo (mistura de branco com povos originários); em 1890, teríamos como grupos – branco, preto, caboclo e mestiços (referindo-se à mistura de brancos e pretos); entre 1900 e 1920, esse item foi excluído dos levantamentos. Em 1940, voltaram aqueles termos, além do termo “amarelo”, incluído pela primeira vez. Só em 1991, quando passamos a incluir o censo entre os povos indígenas – o quesito raça/cor apresentou-se como o conhecemos hoje.
Ao crescer, a menina parda passou por vários procedimentos capilares: de banha de galinha na raiz a produtos com formol que ela usava tampando o nariz pelo cheiro forte e achava muito ruim quando queimavam o couro cabeludo; mas seguia firme, afinal, se a mãe dela, a pessoa que mais a amava no mundo, reclamava de pentear seus cabelos por serem “ruins”, ela devia ser forte e fazer algo sobre isso.
Até a idade adulta, nunca teve uma aula sequer em que se falasse de suas origens. Seguiu as religiões de base cristã-europeia da família. Foi batizada, fez a primeira comunhão, aprendeu como a “macumba” era perigosa. Chegou a ser expulsa de supermercado, confundida com criança em situação de rua. Recordava a voz da tia: “você é besta, Maria, se fosse eu criando, essa neguinha ia viver na cozinha”, logo aprendeu a identificar os olhares dos seguranças das lojas e, para evitar confusão, preferia nunca abrir a bolsa nessas lojas, nem entrar com sacolas.
Durante anos, vez após outra, resistia às abordagens de morena, moreninha, cor do pecado, cor de jambo… Estranhava quando se dizia negra ou, em dias ousados, preta e logo alguém aparentava querer protegê-la ao falar: “não diga isso, você é tão bonita!” Por vezes, vinha o complemento mais doloroso: “Quase branca”.
O desconhecimento das origens, a tentativa de “embranquecer” o país e as violências, genocídios, exclusão, invisibilização e desconstrução da imagem ampliaram as desigualdades. Em vez de identidade positiva, ensina-se a esses meninos e meninas a odiarem seus cabelos, seus rostos, a aceitarem, com naturalidade, que seus corpos são matáveis.
Aquela menina parda é hoje uma mulher que aprende todo dia que construir-se negra, no Brasil, é, antes de tudo, um desconstruir-se das camadas de branquitude impostas ao longo da vida. Ela, agora, publica seu primeiro artigo em um jornal de circulação nacional, esperando, do fundo de sua alma preta, que este texto encontre outros pardos e pardas nessa jornada para poderem se assumir pretos com orgulho!
Raquel Dias – Ativista social, gestora pública, assessora de projetos na Prefeitura de Fortaleza