Humberto Miranda, do Instituto Menino Miguel, aponta segurança alimentar, direito à moradia e proteção como prioridades
Júlia Vasconcelos e Lucila Bezerra/Brasil de Fato | Recife (PE) | 26/4/2021
A pandemia do novo coronavírus, que aprofundou as desigualdades sociais já existentes no país, tornou ainda maior o desafio de garantir proteção e direitos básicos para crianças e adolescentes.
Para falar sobre o impacto da pandemia entre essa população, o Brasil de Fato Pernambuco entrevistou Humberto Miranda, professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador do Instituto Menino Miguel, no Recife.
O instituto foi criado em setembro de 2020 e homenageia o menino negro Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morto em junho do mesmo ano ao cair do 9º andar de um prédio de luxo no Recife onde a mãe, empregada doméstica, trabalhava. Miguel estava sob os cuidados da patroa da mãe, Sari Corte Real, primeira-dama do município de Tamandaré, na região metropolitana da capital pernambucana.
Confira os principais pontos da entrevista:
Desigualdades sociais e violações de direitos
Miranda explica que, no universo desses meninos e meninas, há diferentes formas de impacto. Se de um lado há a baixa eficiência do ensino remoto para alguns alunos, por outro há o público que não têm acesso a ele, seja por falta de computadores, aparelhos de celulares, a própria internet ou uma estrutura adequada que facilite o aprendizado.
Ele ainda enfatiza que as necessidades vão além da questão educacional, passando pela segurança alimentar, a questão da moradia, da segurança, e diversos outros direitos. “Estamos vivendo um cenário de insegurança alimentar. Isso faz a gente perceber que direitos básicos que eram garantidos passaram a não ser”, comenta.
Como exemplo, traz a importância de se ter um olhar sensível para crianças e adolescentes que vivem em situação de rua, de acolhimento ou adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.
“Eu costumo dizer que, na pandemia, estamos na mesma tempestade, com embarcações diferentes. Crianças e adolescentes que pertencem a grupos sociais mais vulneráveis vivenciam violações de forma mais intensa”, ilustra. Nesse sentido, crianças e adolescentes que vivem em comunidades periféricas e/ou fazem parte de comunidades de povos tradicionais também requerem uma atenção redobrada.
A falta da escola
Apesar de ressaltar a importância de que não haja a volta das aulas presenciais escolares neste momento da pandemia, sob risco de colocar em perigo a vida da comunidade escolar, Humberto reforça a importância do papel da escola na vida dessas crianças.
“A escola precisa ser entendida como proteção, como espaço de sociabilidade e de produção de conhecimento. A escola, muitas vezes, é até mesmo espaço de denúncia de violência vivida no espaço familiar ou comunitário”, enfatiza. Um exemplo é o decrescimento do número de denúncias de abuso sexual após o início da pandemia.
Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em março de 2020, o número de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Brasil aumentou 85% em relação ao mesmo período em 2019. Em abril de 2020, após o afastamento das salas de aula, os números começaram a cair.
Entidades que atuam na garantia de direitos das crianças apontam que os números não significam diminuição na violência, mas aumento da subnotificação. “A volta às aulas não é a solução. Mas do jeito que está, é preciso ter um olhar mais sensível e comprometido com a dignidade desses meninos, meninas e suas famílias”, finaliza.
Importância da proteção através da legislação
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) conta mais de 260 artigos que regulamentam diversos temas como o direito à vida, à saúde, à educação, acesso ao lazer e proteção contra violência e o trabalho infantil.
Humberto Miranda explica que o foco deve ser a implementação do que já está no papel e ampliar o seu alcance. “Depois de 30 anos, ele precisa também ser avaliado. E, ao mesmo tempo, o Brasil precisa investir e reforçar as conquistas já estabelecidas pelo ECA”, comenta o professor ao destacar a presença crescente de um discurso anti-estatuto.
“Muitas vezes, as pessoas questionam até a sua legitimidade, principalmente voltados para os fundamentalistas e pessoas que não acreditam, questionam os direitos humanos e ignoram o estatuto”, adiciona. Segundo ele, o Brasil vive um momento de retrocessos e políticas públicas estão sendo construídas distantes do que determina o estatuto, e isso deve ser enfrentado.
Instituto Menino Miguel: resistência frente a uma sociedade racista
Em setembro de 2020, foi lançado o Instituto Menino Miguel para fortalecer a luta por justiça no caso pernambucano que chocou o país e para atuar nas periferias promovendo dignidade humana.
Mesmo antes do acontecimento, o instituto estava sendo pensado para agrupar os projetos da universidade voltados para pesquisa e extensão no campo social e para ações voltadas ao cuidado com a vida e direitos humanos.
Durante o processo de construção da identidade do instituto, aconteceu o caso Miguel. A universidade decidiu homenagear a criança, que se tornou patrona do projeto e mobiliza política e afetivamente o Instituto.
“Eu costumo dizer que Miguel morreu buscando um direito fundamental que estava no estatuto, que é o direito de encontrar a mãe. E foi brutalmente recebido pela empregadora, deixando ele naquele elevador e apertando o dispositivo para o andar de cima quando a mãe dele estava no térreo. Então existia toda uma intenção de castigar, de ferir um menino. E esse castigo se tornou um crime”, conta o professor, que aponta que no caso de Miguel diversos direitos foram negados, não só a ele, como à sua família.
“Não há como fazer universidade hoje distante dessas questões. Miguel vive no Instituto, Miguel vive na nossa luta. E Miguel vive na nossa batalha diária pelos direitos da criança e do adolescente, para que outros Migueis não tenham o destino que o nosso pequeno Miguel teve”, finaliza.
Fonte: BdF Pernambuco