100 anos depois, o acontecimento que marcou o modernismo no Brasil tem muito a ensinar, até nas inconsistências
Nara Lacerda/Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 13 de Fevereiro de 2022
Em meio a turbulências sociais e políticas e dividido entre o conservadorismo e os apelos da modernidade, o Brasil que abrigou a Semana de Arte Moderna de 1922 tem muitas semelhanças com o país de agora. Vivendo os últimos respiros, a Primeira República falhava em colocar a democracia em prática e matinha de pé estruturas sociais que reforçavam desigualdades históricas.
Foi nesse contexto que um grupo de intelectuais e artistas de São Paulo promoveu o evento cultural histórico. Entre os dias 13 e 18 de fevereiro, o Teatro Municipal da capital foi ocupado por uma agenda de música, poesia e artes plásticas que desafiava os padrões, buscava uma identidade genuinamente nacional, escandalizou a sociedade e mudou a arte.
“Contra a realidade social, vestida e opressora”
O modernismo chegou ao Brasil pelas mãos de filhos e filhas de famílias abastadas, o que os garantia acesso à educação, viagens e informações sobre o que estava acontecendo no mundo. Fortemente influenciado pelas vanguardas europeias, se juntava ao coro por mudanças, mas vinha das elites. A própria Semana de Arte Moderna de 1922 foi financiada pela aristocracia cafeeira de São Paulo.
Durante boa parte da Primeira República, o interior do país foi deixado de lado e as principais cidades estavam no litoral. No ambiente urbano, a industrialização engatinhava sem estruturas de trabalho justas e favelas e cortiços se multiplicavam. No campo, o coronelismo definia a realidade e, mesmo após a abolição da escravidão, a dinâmica mudou pouco.
O período foi muito fértil para o surgimento de movimentos sociais, populares e operários e para uma nova visão crítica sobre a realidade da população. Entre 1910 e 1920, cerca de 400 greves foram realizadas. Foi fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e, em 1922, foi criado o Partido Comunista.
Figuras icônicas populares como Antônio Conselheiro e João Cândido já eram conhecidas. A geração dos modernistas teve contato com os horrores da Guerra de Canudos e com os desdobramentos da Revolta da Chibata ainda jovem.
Ao mesmo tempo em que filhos e filhas da burguesia tinham cada vez mais acesso a educação no exterior e aos avanços tecnológicos, uma parte dessa juventude alinhava essas possibilidades a um interesse maior pelo Brasil e por uma identidade nacional.
“Só me interessa o que não é meu”
O grupo que realizou a Semana de Arte Moderna de 22 fazia parte dessa realidade. Entre os nomes por trás do evento estavam o poeta e historiador Mário de Andrade, o escritor, Oswald de Andrade, a artista plástica, Anita Malfatti e o escritor e poeta Menotti Del Picchia.
Nas expressões brasileiras, buscavam elementos para construir uma identidade cultural que conseguisse abraçar a diversidade, a mistura de raças e as manifestações populares. Ao abrir o evento, o escritor Graça Aranha resumiu esse sentimento.
“Uma vibração íntima e intensa anima o artista neste mundo paradoxal que é o universo brasileiro, e ela não se pode desenvolver nas formas rijas do arcadismo, que é o sarcófago do passado. Também o academismo é a morte pelo frio da arte e da literatura. (…) O que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil.”
Vaiadas por um público escandalizado, as atrações e obras foram objeto de críticas na imprensa. A semana em si não foi assunto por muito tempo na época. O impacto histórico passou a ser construído posteriormente, a partir da percepção dos frutos e do legado para o movimento modernista no Brasil.
“Fizemos foi o Carnaval”
A veia crítica foi a espinha dorsal da Semana de Arte Moderna de 1922, concebida como uma resposta às comemorações oficiais do bicentenário da independência no mesmo ano. A tentativa de ruptura com as estéticas do passado e de construção de uma identidade genuinamente nacional nas artes foi condenada pelos conservadores da época.
Posteriormente, e até hoje, o movimento foi questionado pela falta de envolvimento com o Brasil real. Ironicamente, a busca não teria se aprofundado no objeto que procurava e a leitura ainda era a da burguesia.
Vinte anos depois da Semana, em uma conferência sobre o modernismo, Mário de Andrade criticou o movimento do qual fez parte. Afirmou que sua geração foi aristocrática, não captou realmente a realidade brasileira e fez pouco para muda-la.
Para o poeta, faltou no discurso “maior angústia do tempo, maior revolta contra a vida como está”. Em vez disso, disse ele, “fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura”.
É uma visão melancólica, mas a proposta era ser realista. Mário dizia que os modernistas não deveriam ser vistos como exemplo e que o movimento não ajudou “no amelhoramento político do homem”, usando as palavras dele.
Em um apelo final, indicou o caminho para superar o distanciamento, “Se de alguma coisa pode valer o meu desgosto: façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos da vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões”.
Os títulos internos desta matéria são trechos do Manifesto Antropófago, tratado modernista escrito por Oswald de Andrade.
Edição: José Eduardo Bernardes