Benzedeiras: Afeto, tradição, memória e fé em Minas Gerais

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Em 2/3/2022. Site Geledés

 

Quebranto, cobreiro, aguamento, ventre-virado são males vinculados à ação de cura das benzedeiras e dos benzedores. Suas orações ingressam em um universo simbólico de práticas curativas que fazem parte das crenças populares e penetram a memória coletiva.
Uma tradição cuja origem se perde no tempo, a benzedura se mantém em uma trilha que ecoa através das gerações. A tradição oral apresentada nos benzimentos tem como base difusora as redes familiares e de convivência. A partir delas os conhecimentos são transmitidos de forma direta ou indireta para a geração seguinte, o que garante de certa forma uma herança simbólica. De acordo com Myriam Lins de Barros, a transmissão de valores e bens simbólicos para os descendentes confere à família o lugar de passagem e evidencia a noção de tempo cíclico. Sendo a família o lugar em que os processos cíclicos identitários são elaborados, a oralidade tem um papel essencial na transmissão desses valores e conhecimentos, pois corresponde ao caminho pelo qual os benzedores ingressam por esse ofício de cura.

Vó Ana e tia-avó Geralda: irmãs e benzedeiras. Coronel Xavier Chaves. 2015. (Foto: Acervo pessoal)

 

A tradição oral empregada na prática de benzedura representa um vínculo afetivo com a pessoa que ensinou aos benzedores o ofício da cura. Representa o vínculo com o passado, com os costumes, mas também com sua identidade. A forma de transmitir a prática da benzedura reflete na relação que os benzedores têm com o passado, com seus instrutores e com sua forma de ser e vivenciar a prática da benzedura. 

 Além das orações repassadas, os benzedores carregam consigo devoções e religiosidades que se manifestam a partir das vivências e visões de mundo desses sujeitos. Joël Candau mostra que “transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo”. A forma como cada benzedeira ou benzedor manifesta seu exercício de fé e cura no presente representa o modo como se conecta com seu passado.

A partir das trajetórias dos benzedores, no qual incluo também a trajetória de minha avó, Ana de Jesus Rodrigues, proponho uma investigação sobre as práticas religiosas e o processo de formação de suas identidades através de suas memórias. O estudo é realizado na cidade de São João del-Rei, em Minas Gerais. Através da História Oral estabelecemos um vínculo de construção de memórias por meio da relação do passado e do presente. Ao lidar com memórias individuais, constituímos um terreno rico para trabalhar a subjetividade, as vivências e emoções desses sujeitos.

As enfermidades vinculadas à prática da benzedura adquirem um sentido próprio que estabelece uma ligação entre o benzedor e o consulente, que busca uma resolução dos males que o afligem. Para Alberto Manuel Quintana, a ligação da doença com o social se verifica pela busca de uma explicação para a doença que consiga dar conta dos componentes biológicos e, principalmente, dos elementos socioculturais. 

A doença não pode ser vista como um processo isolado do seu contexto social. Há sempre uma necessidade de conhecer a causa do mal, e fundamentalmente, as circunstâncias que possibilitaram sua existência. O corpo não é percebido apenas na sua dimensão biológica; ele possui uma dimensão simbólica, pois o corpo é uma construção social. Dessa forma, as doenças que afligem o corpo, assim como as práticas de cura destinadas a combatê-las, também apresentam caráter social. 

As enfermidades vinculadas à prática de benzedura adquirem um sentido próprio entre os benzedores e os consulentes. Se não há esse compartilhamento de crenças, de sentido, de fé, não há como promover a cura.

Aviso informando sobre a suspensão por tempo indeterminado dos benzimentos de dona Teresa por conta da pandemia do coronavírus. São João del-Rei, 29/08/2020. (Foto: Soraia Geralda Santos)

De acordo com Alberto Manuel Quintana, o processo ritual da prática de benzedura é formado basicamente em três momentos. O primeiro seria o diálogo; o processo inicia com a chegada do consulente que solicita a intervenção do benzedor. O segundo, seria a bênção; é a benzedura propriamente dita. Esse momento costuma ser acompanhado com orações católicas como Pai-Nosso, Ave-Maria, Credo e Salve Rainha. E, o último momento, a prescrição, que são condutas de como os consulentes devem agir depois da benzedura para  que o tratamento surta efeito. Alguns benzedores, por exemplo, recomendam que o benzimento seja realizado durante três dias consecutivos, ou indicam tomar um banho de alguma erva medicinal para reforçar o processo de cura. 

Durante a benzeção, alguns recursos e instrumentos são utilizados para auxiliar no processo de cura. A voz, por exemplo, exerce um papel fundamental nos benzimentos, pois aciona os comandos nas orações para que o mal saia do corpo do consulente. O terço é um objeto muito utilizado nas benzeções, assim como o talo da mamona nos benzimentos para cobreiro. Ervas como alecrim e arruda costumam ser usadas nas benzeções de quebranto e mau-olhado. A agulha, linha e um pedaço de pano são utilizados nas orações de jeito e de coser. 

Alguns desses objetos servem como metáfora do corpo intermediário, como sugerem Edimilson Pereira e Núbia Gomes. Para a extinção do mal e o restabelecimento do equilíbrio, as benzeções necessitam de um corpo intermediário, para o qual a doença e o sofrimento possam ser transferidos e anulados. 

A figura dos benzedores está vinculada ao imaginário popular, suas orações e rituais permeiam um universo representativo criado por diversas influências culturais. A imagem formada de um benzedor fomenta uma identidade que os representa diante de sua comunidade. Através da prática, o benzedor representa uma figura intermediária que recebe o poder divino para aplicá-lo nas pessoas que o procuram a fim de se curar. 

Benzedeira Dona Teresa Augusta dos Reis. São João del-Rei, 29/8/2020. (Foto: Soraia Geralda Santos)

No repertório de rezas dos benzedores são recorrentes as orações de quebranto, cobreiro, ventre-virado, entre outras. Esse compartilhamento de orações é comum a esse grupo. A apropriação dessas rezas resulta na ressignificação das práticas de benzedura, ou seja, os benzedores, mesmo com o repertório de orações semelhantes, estabelecem novas leituras por meio de devoções particulares e religiosidades em sua prática de cura. Dessa forma, acreditamos que a prática da benzedura apresenta-se através da relação particular, da leitura que cada benzedor tem com o catolicismo, com outras religiões e crenças.

O ofício da benzedura desenvolvido por esses benzedores e benzedeiras carrega uma força ancestral que se perde no fio do tempo. Suas vozes ecoam saberes, expulsam o mal, promovem a cura, harmonizam o espírito. Fazer o bem é o que move suas trajetórias de vida. 

Tayane Aparecida Rodrigues Oliveira

Historiadora, Mestranda pela Universidade Federal de São João Del-Rei (PGHIS-UFSJ); integrante do Grupo Emancipações e Pós-Abolição em Minas Gerais; e-mail:tayanearo@gmail.com

 

 

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