Documento aponta assédio sexual, moral e define prioridades para combater a discriminação
Casos de assédio moral e sexual, como a tentativa de um beijo por um juiz na antessala de uma audiência, tentativas de inviabilização do trabalho pelos chefes, exposição de familiares na imprensa e nas redes sociais para frear a atuação pública. Esses são algumas das situações presentes no parecer técnico “Violência Política e Institucional Contra Defensoras Públicas no Brasil”, que será lançado na próxima quarta (6), para discutir a violência de gênero praticada sistematicamente nos órgãos públicos do país.
O documento obtido em primeira mão pelo Brasil de Fato é resultado de um estudo a partir de relatos coletados entre 2020 e 2021 de um grupo de trabalhadoras presentes na Coletiva Mulheres Defensoras, espaço com cerca de 200 representantes de todo Brasil.
A defensora pública geral do Pará, entre 2016 e 2020, Jeniffer Barros explica que o alegado combate à discriminação, por meio do concurso público, termina quando elas passam a almejar cargos de gestão. Os repetidos casos de violência política para impedir o acesso a cargos de poder por trabalhadoras é sinal dessa discriminação.
Ao se candidatar à posição que é escolhida pelo governador a partir de uma listra tríplice definida após um processo eleitoral interno, ela conheceu de perto essa realidade. Durante visita a uma comarca do interior como parte da campanha à defensoria geral, as perguntas não eram sobre projetos, mas para garantir que Barros conhecia conceitos primários, como o que era um orçamento, a diferença entre investimento, custeio e outros aspectos básicos ligados à gestão.
“Enquanto eu falava sobre estratégias que ia utilizar para buscar recursos, um colega disse que eu não iria conseguir, que era muito bonitinha, mas não seria possível. Antes de qualquer apresentação, eu precisava dedicar um tempo para justificar minha vida pessoal e demonstrar que tinha qualificação para esta ali”, lembra ela.
Outro exemplo de situação constrangedora e inapropriada foi relatado pela ex-presidenta da Associação dos Defensores e Defensoras Públicas do Paraná (Adepar) Thaísa Oliveira.
A visita ao gabinete de um parlamentar do Congresso Nacional, em 2017 rendeu marcas que carrega até hoje. Após ingressar na sala, foi orientada a se sentar, abrir as mãos e fechar os olhos.
“Eu agarrei a pessoa ao meu lado e fiquei sem reação até ele colocar um chocolate na minha mão. Deve ter sido um minuto que pareceram 10, mas você imagina ele fazendo o mesmo com um homem? Nessas horas pensamos que termos de ter jogo de cintura, porque não estamos ali apenas em nosso nome, mas no de 10 mil defensores e defensoras que representamos”, pontua Oliveira.
Abrir diálogo
O objetivo central do parecer é abrir canais de diálogo. Ao longo de 53 páginas, o material define o conceito de violência política, destaca porque ainda é pouco discutido no país, aborda normas e leis sobre igualdade de gênero desrespeitadas e traz depoimentos anônimos para preservar a identidade das defensoras. Mas capazes de ilustrar os desafios das mulheres em ocupar espaços públicos no país.
As trabalhadoras pretendem, dessa forma, promover ações concretas de enfrentamento à violência de uma maneira que possa ir além das discussões internas. Para isso, o parecer apresenta ainda sete medidas de defesa da igualdade como cotas para cargos na administração superior e a realização de fóruns, campanhas e seminários.
Advogada, pesquisadora e uma das responsáveis pelo documento, Roberta Eugênio acredita que, às vésperas das eleições, o debate sobre essa forma de violência é essencial para incluir o tema na agenda de candidatos e candidatas.
“Definir essa forma de agressão especificamente é fundamental para que tenhamos uma agenda pública para tratamento de um problema que não se combate apenas com a judicialização. Precisamos pensar em ações mais amplas e estruturadas no interior dos órgãos para mudar essa realidade”, afirma.
Com o lançamento do parecer também será criado um canal no Instagram para receber denúncias e acolher as defensoras vítimas de violência. Uma das preocupações das trabalhadoras é a formação de redes de amparo, ideia que pode naufragar se não considerar critérios como gênero e posição hierárquica.
A ideia é que não adianta você ter comitês se eles são formados por homens que ocupam cargos de poder e, portanto, inibem as denúncias, já que muitos deles são os próprios executores dos abusos
Desigualdade em números
Apesar de maioria no serviço público brasileiro, 59% das funcionárias, as mulheres recebem 25% a menos do que os homens, de acordo com a Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018.
Enquanto os servidores recebem, em média, 5,2 salários mínimos por mês, uma mulher ganha 3.9 salários. Um fator que pode ser explicado pela presença das trabalhadoras em áreas onde são maioria, como educação (80%) e saúde (85%).
Diante disso, o Índice brasileiro de Paridade Política no Poder Judiciário é de 21,7 em um possível pontuação máxima de 100, o que demonstra a baixíssima presença de mulheres nos cargos de maior poder e decisão.
Uma desigualdade expressa desde a raiz, conforme identifica o relatório Atenea produzido pela ONU Mulheres e PNUD Brasil, em 2020, no qual as mulheres são quase metade das advogadas do país (49,2%), mas entre os magistrados, apenas 35,9% são do gênero feminino.
Apenas em agosto de 2021, o Brasil teve promulgada a primeira legislação que dispõe sobre normas para enfrentar e prevenir a violência contra as mulheres na política, a Lei 14.192, considerada pouco abrangente e que não incluí mulheres transexuais, por exemplo.
Edição: Rodrigo Durão Coelho