“Não posso chegar nas últimas décadas de minha vida vendo todo o patrimônio do Complexo Hospitalar da UFRJ, construído ao longo de todo o século XX, ser entregue a uma Empresa de Direito Privado criada pelo Banco Mundial visando restringir a atuação do Sistema Único de Saúde”, declara o professor emérito da UFRJ Nelson Souza e Silva, comentando que esse Sistema Universal, integral, hierarquizado, “construído ao longo de décadas com o esforço de gerações de profissionais de saúde, segundo o Banco Mundial, deve deixar de ser universal para atuar apenas “focalizado” na atenção básica de saúde, deixando a atenção de alta complexidade nas mãos de empresas de direito privado ou de organizações sociais”.
“O que é a Ebserh que não uma empresa pública de direito privado para gerenciar todos os Hospitais universitários e de alta complexidade do País?”, questiona o cardiologista, que dedicou 63 anos, dos seus 81 anos de vida, à UFRJ e contribuiu, junto com inúmeros professores, técnicos-administrativos e alunos, para a criação do Hospital Universitário, do Instituto do Coração Edson Saad, do Instituto de Saúde Coletiva, do Complexo Hospitalar da UFRJ, entre outras importantes iniciativas.
Alerta ao Consuni
Ele produziu extenso documento para subsidiar a análise do Conselho Universitário na decisão de assinar ou não o contrato com a Ebserh. Nele, explica que o gerenciamento de instituições públicas por empresas de direito privado foi denominado pelo Banco Mundial de “publicização” das instituições públicas que não podem ser privatizadas, como as universidades públicas e demonstra, com base na Constituição, que a autonomia universitária está gravemente ameaçada, assim como os sistemas de Educação, de Saúde e de Ciência e Tecnologia públicos: “A universidade não pode perder a gerência de seu Complexo Hospitalar. O que devemos exigir do governo, como uma Autarquia Especial autônoma que somos é que o Programa REHUF, este sim, corretamente criado para que os Hospitais universitários tenham recursos orçamentários suficientes, provindos dos Ministérios da Saúde e da Educação e gerenciados pelas próprias universidades e que atualmente está entregue à EBSERH, retorne para ser gerenciado pelas Universidades através de suas unidades Orçamentárias”, diz ele.
Patrimônios são inalienáveis
O médico argumenta que a UFRJ não necessita de uma empresa intermediária, mas sim, da formação de um complexo ou rede de hospitais universitários do país, públicos, gratuitos e de qualidade, com orçamento global e que seja suficiente para suas reais necessidades de ensino-pesquisa e extensão, expressas em seus planos anuais, elaborados autonomamente, e gerenciado pelas suas unidades orçamentárias próprias.
“Os recursos orçamentários atuais, provenientes tanto do Rehuf como da prestação de serviços hospitalares (Fundo Nacional de Saúde) são das universidades. As universidades estão perdendo a gerência de seu pessoal e de seu patrimônio da área de saúde os quais são inalienáveis”, alerta o professor emérito.
Trechos do documento
“Considerações sobre Autonomia Universitária e a EBSERH”
“A Universidade não pode e não deve alienar seu patrimônio para ser gerenciado por empresas de qualquer natureza. Gerir seu patrimônio e seu pessoal é sua função Constitucional como Autarquia Especial”, diz o professor emérito. Veja alguns outros destaques do texto:
Avanço na reforma do Estado
Aceitar um contrato com a EBSERH é uma clara tentativa de acabar com a autonomia universitária, avançar na reforma do Estado e do Sistema Único e Universal de Saúde pela via neoliberal de construção de um Estado mínimo com a entrega do setor púbico a empresas de capital público, mas de direito privado, ou mesmo para empresas de capital privado como está na proposta de reforma administrativa em discussão no Congresso.
Universidade aliena seus bens
Podemos inferir que os termos do contrato que está em negociação pela Reitoria, mas que até o presente, não foi apresentado à comunidade da UFRJ para a devida discussão, são os mesmos, talvez com pequenas alterações, que os contratos já aprovados pelas universidades contratadas.
Em todos esses, as universidades, “ALIENAM” seus bens, cedem, transferem seu patrimônio, para ser gerenciado por essa empresa pública de direito privado. Justifica-se essa entrega como sendo necessária para melhorar a “eficiência da gestão” dos Hospitais Universitários e, portanto, de nosso complexo hospitalar, como se a Universidade fosse, por definição, ineficiente para administrar seus bens e serviços.
Hospitais estratégicos
Os Hospitais de ensino não são hospitais apenas assistenciais e, portanto, não podem ser alienados para “empresas de serviços” de direito privado. Suas funções são essenciais para os Sistemas de Saúde, de Educação e de Ciência e Tecnologia de nossa Universidade e para o País e devem ser considerados estratégicos para o desenvolvimento nacional. Não é possível aceitar que sejam afrontadas a autonomia universitária e a indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão, princípios constitucionais que asseguram os direitos e garantias fundamentais cristalizados sob a forma da livre manifestação do pensamento e livre expressão das atividades: científica, intelectual, artística e de comunicação-informação.
Traição
A proposta da EBSERH, como uma empresa de serviços de direito privado, é inconstitucional, ilegal e antiética; uma traição às lutas que se processaram desde o início do século XX e anteriores à criação de nossa universidade.
Orçamento global
A universidade tem direito a um orçamento global, como forma de garantir a consecução de seus fins e objetivos dentro das limitações impostas pela própria constituição. Para tal, é imperiosa a garantia da autonomia administrativa universitária no poder de autodeterminação e auto normatização relativas à organização e funcionamento de seus serviços e patrimônio próprios, inclusive no que diz respeito ao pessoal que deva prestá-los e à prática de todos os atos de natureza administrativa inerentes a tais atribuições e necessários à sua própria vida e desenvolvimento.
UFRJ não pode entregar
A universidade não pode entregar seu patrimônio e nem seu pessoal para serem gerenciados por uma empresa, ainda que pública, mas de direito privado à qual não cabe a qualificação de autarquia especial. Esta tarefa cabe única e exclusivamente à própria universidade autônoma. Assim a Constituição o determina. Não há nada que essa “empresa de serviços” possa fazer para administrar os HUs, que a Universidade autônoma e autárquica especial não possa fazer com competência maior e exclusiva.
Não pode a universidade alienar seus hospitais universitários e seu pessoal para serem geridos por esse ente estranho à universidade. Cedidos para essa empresa, o patrimônio e o pessoal dos hospitais universitários deixam de ser gerenciados pela Autarquia Especial criando um enorme conflito administrativo e legal.
A Ebserh é constitucional?
O STF, através da relatoria da Ministra Carmen Lucia, se pronunciou a respeito dizendo que a Criação da Ebserh não fere a Constituição. Realmente, o poder Executivo pode criar uma empresa pública de direito privado, mas não para prestar um serviço público que já é prestado pelo Estado através do Sistema Único de Saúde (SUS). Este é apenas um dos questionamentos. Existem outros. Esta empresa não pode construir seu patrimônio através da cessão do patrimônio das universidades autárquicas especiais, nem que seja por contrato.