Visita ao quilombo liderado por Zumbi e Dandara permite experiência única e conexão com a resistência e luta
“Se Palmares não vive mais faremos Palmares de novo”, é uma frase do poeta José Carlos Limeira que virou grito do movimento negro “Vamos fazer Palmares de novo”, como um chamado para se aquilombar, resistir. Foi isso que um grupo de 15 pessoas fez em novembro de 2019 ao subir a Serra da Barriga e acessar as terras lideradas por Zumbi e Dandara, que foi o primeiro quilombo das Américas e simbolizou uma das maiores resistências ao período de escravização do Brasil colonial.
O Parque Nacional Quilombo dos Palmares fica a cerca de 80 quilômetros de Maceió. É possível ir de van a partir da capital alagoana em um bate-e-volta. Vale a pena contratar um guia e não há muito o que fazer em dois dias que justifique dormir por lá. A Serra da Barriga abrigou quilombos por cerca de 100 anos, onde mais de 30 mil pessoas viveram livres no século XVII. A imensidão que se vê a partir do Parque Memorial, onde ficava o quartel general dá a noção da grandeza do que foi. Afinal, a Serra da Barriga possui cerca de 28 mil quilômetros quadrados, que eram ocupados por vários quilombos.
Estar em Palmares é mais do que foto bonita no Instagram, é sentir-se parte da história de luta. O lugar fala de vários jeitos, incluindo a energia que emana, bastante forte, mas não pesada. A história narrada no parque lembra de elementos que marcaram o quilombo, como a capoeira, o candomblé e também os indígenas que por ali viviam 1,2 mil anos antes do lugar abrigar um centro de resistência negra. As urnas funerárias e histórias dos indígenas também são contadas, assim como as técnicas de guerra reproduzidas pelos palmarianos e os saberes ancestrais e de ligações religiosas que foram repassadas pela xamã Acotirene (afroindigena), que foi líder espiritual na época de Zumbi.
Por lá, um Iroco, o orixá do tempo, é representado por uma árvore plantada ao lado de um lago, onde foram encontradas várias cabeças decapitadas na época da invasão do quilombo. É nesse lugar que o grupo de visitantes se reúne em roda para falar das sensações, chorar e dançar em círculo cantando: “Eu sou de lá, de África. Se eu não sou de lá, meus pais são de lá, de África. Eu sou de lá, de África, se eu não sou de lá, meus avós são de lá, de África. Eu sou de lá, de África… Se eu não de lá meus ancestrais são de lá, de África”. A árvore que representa o orixá do tempo está oca há anos, mas continua firme e forte. Esse é um dos lugares para sentir a conexão com o passado, ouvir os silêncios, os barulhos da natureza e dos voduns.
Experiência
A viagem para Palmares não é apenas um turismo de lazer, mas de reconhecimento, de história e de sentimentos. “É muito importante fazer esse caminho, refazê-lo. Há uma vibração e uma emoção em subir a Serra da Barriga. É uma das nossas referências. Lembrar das condições que o nosso povo lutou, para estarmos aqui hoje, falar para os nossos terem orgulho do processo de resistência do povo negro, que nos custou muito, mas retrata a nossa grandeza”, afirma a socióloga e ativista Vilma Reis.
Uma das participantes do grupo que subiu a Serra da Barriga foi a jornalista e militante da Marcha das Mulheres Negras Juliana Gonçalves, que conta ter ficado bastante empolgada já no trajeto. “Fui prestando atenção na paisagem, nas histórias que tinha ouvido. Era uma busca pela liberdade que levava as pessoas àquele lugar. Um tudo ou nada. Havia um comando, pautado pelo bem coletivo, por isso funcionou por tanto tempo”, lembra.
Ao chegar no parque, os visitantes são convidados a tirar o sapato, para pisar no local que é considerado um solo sagrado. “Foi uma experiência única, que me fez renovar os votos com a luta pela liberdade e deu sensação do pássaro africano sankofa: de olhar para o passado, com os pés voltados para o futuro. A base organizativa do quilombo era ter o que o que comer e saber se defender. Precisamos rever nossas estratégias de luta hoje e ver o que é prioridade a partir disso. Renovou meus votos como militante, com um olhar mais fresco para a conjuntura atual”, define Juliana Gonçalves.
A ligação com a ancestralidade, segundo ela, é inevitável. “Senti uma conexão direta com Dandara, que deu o sangue por um processo de liberdade. Ela teria se jogado para não se entregar. Me senti conectada em um processo de luta e sobrevivência que persiste até hoje. Lembro da minha avó e de tantas outras mulheres negras que mesmo não sendo militantes tiveram que adotar táticas de sobrevivência. É assim que vamos existindo”, diz a integrante da Marcha das Mulheres Negras.
As famosas palmeiras que deram nome ao lugar ainda estão pelo terreno. As cinzas do jornalista e militante do movimento negro Abdias do Nascimento foram espalhadas no entorno de uma árvore baobá que ainda ganha forma. Há algumas casas dentro do parque. São pessoas que passaram a ocupar a região e que disputam para estar na área considerada protegida pela União e sagrada para muitos movimentos. No dia 20 de novembro, as religiões de matriz africana organizam um grande cortejo e realizam cerimônias no local. O dia 6 de fevereiro, quando o quilombo foi invadido, e o 21 de março, Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, também são datas especiais, marcadas por atividades.
É o tipo de viagem que não acaba, quando você vai embora. A energia que o quilombo emana continua morando de alguma forma em cada um que o visita. Palmares é um lugar que dá a importância de resistir para existir. Em que se reforça a certeza de que valeu e vale a pena lutar e de que cada pessoa negra carrega essa herança, essa ancestralidade e tem a missão de mantê-la viva. Por isso, a importância de sermos sabedores de nossa história e podermos revisitá-la sempre: vamos fazer palmares de novo?!
* Guilherme Soares Doas- 28/1/2020/ CartaCapital O repórter viajou a convite da Black Bird Viagem, Brafrika e Diaspora.Black.