Escândalo da falta de vacinas

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Casos precisam ser apurados, mas não podem ofuscar a dimensão do trabalho dos milhares de profissionais do SUS que atuam no combate à Covid-19 e salvando vidas.

O Brasil, com seu Programa Nacional de Imunização reconhecido internacionalmente, é um dos poucos países do mundo que ofertam vacinas de maneira universal em milhares de postos – através do Sistema Único de Saúde (SUS) –, e pelas mãos de profissionais eficientes que enfrentam todo tipo de dificuldades para chegar aos locais de difícil acesso. Segundo especialistas, com toda essa estrutura, o país poderia vacinar 60 milhões de pessoas por mês, se o governo federal desejasse.

No entanto, do início da vacinação em 17 de janeiro até o dia 22 de fevereiro, foram vacinadas apenas 5.982.640 pessoas (2,83% da população). Faltam vacinas, porque o governo Bolsonaro não negociou com antecedência a compra do imunizante, como também não organizou uma campanha nacional de vacinação em massa. Mas sobram fake news.

“Vacinas de vento” 

Em meio ao caos com a vida humana imposto pelo governo federal, surge agora uma denúncia grave e que atinge os profissionais de enfermagem. Casos da chamada “vacina de vento” ocorreram em pontos diferentes do país, e consistem em denúncias de falsa aplicação da vacina nas pessoas. 

O Conselho Regional de Enfermagem do Rio (Coren-RJ) está apurando as denúncias e propõe: capacitação de todos os profissionais envolvidos na vacinação sob a coordenação de enfermeiros; organização do fluxo de atendimento de forma a eliminar dúvidas ou equívocos por parte do profissional e que seja mostrado ao usuário a vacina que ele vai receber e a seringa vazia após a aplicação da injeção.

Ataque à saúde pública

A integrante da Coordenação de Cursos e Eventos do Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis (ex-Hesfa), a enfermeira e sanitarista Danielle Amaral de Freitas, com mestrado e doutorado em epidemiologia e saúde pública, ressalta que o cuidado com a saúde é protagonizado pela enfermagem, portanto, para ela o ataque é ao direito à saúde. E ocorre por meio da associação da aplicação da vacina a efeitos adversos, e com isso o governo Bolsonaro vai apagando o histórico de mais de 30 anos de sucesso do Programa Nacional de Imunização.

Servidora da UFRJ há 14 anos, Danielle Amaral diz que os profissionais de enfermagem pertencem a uma categoria desvalorizada, que trabalha com alta carga horária (“porque lutamos pelas 30 horas semanais há mais de 30 anos”) e são os mais expostos ao coronavírus na pandemia, e por isso os que mais adoeceram entre os profissionais de saúde e registram uma taxa elevada de óbitos. 

“São profissionais que trabalham o tempo todo com a vida e com a morte, e as pessoas esquecem que são humanos. Os ataques vêm porque a população está cobrando seu direito. Mas também é importante que o profissional de enfermagem tenha segurança e tranquilidade nas suas relações de trabalho. Muitos já estão cansados”, afirma. Em relação às acusações da chamada “vacina do vento”, Danielle lembra que a Constituição garante o direito de defesa a todas as pessoas.

A enfermeira sugere que se faça a comparação entre o número de pessoas imunizadas com os erros cometidos na aplicação da vacina, e pergunta: “O erro cometido é maior do que o quantitativo de profissionais que estão trabalhando dia após dia para vacinar a população? Isso não significa”, avisa, “que as falhas não sejam apuradas e os responsáveis possam se explicar”. 

Categoria essencial na berlinda

Para Marcos Padilha, técnico em enfermagem do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), e seus colegas de profissão na unidade hospitalar, o sentimento foi de “traição” e “decepção” pela forma generalista em que se deu a divulgação, pela mídia, do erro na aplicação da vacina.

“A gente sabe como funciona a doença [Covid-19], e a dor de perder colegas e familiares. Ver pessoas aplicando suas ideias negacionistas na ponta do seu trabalho é muito frustrante, porque atinge toda uma categoria que está lutando desde o início contra o coronavírus. Negacionismo é um pensamento que está na cabeça de muitas pessoas no nosso país e no mundo. Eles são contrários às inovações da ciência e não conseguem entender que a vacinação em massa é a grande saída para a pandemia”, avalia o enfermeiro. 

Negação da vacina 

“Esse governo tem muito interesse em que as pessoas não vão se vacinar. Porque as pessoas vacinadas voltam a circular, a se manifestar contra as iniciativas de desmonte da máquina pública. Tudo o que faz parte da construção da negação da vacina, como as falsas informações que se sucedem, é do interesse do governo”, afirma Ivone Cabral, professora titular aposentada da Escola de Enfermagem Anna Nery e voluntária do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFRJ, e atual docente adjunta da Faculdade de Enfermagem da Uerj, onde também atua no programa de imunização.

Ela avalia que os casos de “vacinas de vento” têm que ser apurados, até para se saber da veracidade dos vídeos divulgados, que podem ser fake news. “Não estou negando que um profissional negacionista ou bolsonarista caia nesta iniciativa de contribuir para que as pessoas não busquem a vacinação”, observa, e defende o afastamento dos responsáveis, se houver, e que sejam responsabilizados eticamente e punidos pelo conselho profissional. “Porque não se pode usar a profissão para exercitar sua ideologia. [O profissional] Não têm o direito de negar o direito do outro a providências que protejam sua saúde”, enfatiza.  

“É preciso apurar, separar o joio do trigo. Os profissionais de enfermagem são os que fazem a vacinação, são respeitados pela população, têm conhecimento da técnica, e não é de hoje. O Programa Nacional de Imunização é muito sério, e as pessoas que estão na linha de frente são sérias. Falamos isso de longa data e nunca houve esse tipo de denúncia. Por isso meu desconfiômetro”, acrescenta Ivone.

Segundo a professora, fato como esse coloca em risco a qualidade do Programa, sua abrangência e magnitude, e a responsabilidade do Estado é com a continuidade da vacinação. Por conta disso, ela critica a iniciativa da rede privada de comprar vacinas, o que diminuiria a oferta para a população: “É o setor público que tem que arcar, sim, com a imunização da população. Vacina tem que ser no setor público! Neste momento de crise sanitária, a responsabilidade é do Estado”.

 

 

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