“A sanha destrutiva de Bolsonaro pode reduzir o Estado brasileiro ao mínimo, entregar fatias enormes de sua atuação ao setor privado e – com o fim da estabilidade no serviço público – permitir que a cada eleição os Executivos municipais, estaduais e federal possam demitir e contratar pessoal que não seja das carreiras típicas de Estado.”
A constatação é do professor Wagner de Melo Romão, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Ele participou de podcast sobre a reforma administrativa de Bolsonaro, a qual classificou como “maior ataque neoliberal ao Estado e à sociedade brasileira”.
Análise
Segundo o professor, essa reforma administrativa é um ponto de inflexão na organização do Estado brasileiro. “Como o que tudo vem desse governo, é uma reforma que vai piorar a capacidade do Estado ofertar serviços públicos para a grande maioria da população”.
No primeiro episódio do podcast, ele destacou alguns elementos da proposta “que, se efetivados, vão alterar e muito o Estado brasileiro e o funcionamento do serviço público”:
“Essa reforma é uma cria de Paulo Guedes (Economia), talvez o ministro mais neoliberal do governo Bolsonaro. É uma reforma de origem fiscalista, tem mais a ver com a tentativa desse governo de cortar gastos, de diminuir o aparelho de Estado do que efetivamente melhorar o serviço público e melhorar a capacidade do Estado brasileiro de dar respostas às necessidades da população. É uma proposta que se pretende mudar todo o Estado brasileiro nos três níveis da federação: federal, estadual e municipal.”
Romão ressalta que a reforma administrativa atende aos interesses da base de apoio do governo Bolsonaro.
“Ela chega quase no final do segundo ano de governo com uma condição política bastante favorável para Bolsonaro. Tem o Centrão como parceiro e o aliado Arthur Lira (Progressistas-AL/ presidente da Câmara dos Deputados). Há uma articulação muito forte entre o Centrão e essa pauta conservadora e que se mescla com os interesses do agronegócio e os setores armamentistas que formam a base do bolsonarismo. Então temos uma situação dentro do Congresso favorável à aprovação desta PEC com os 2/3 necessários.”
O Centrão, para quem não sabe, é um conjunto de partidos políticos do Congresso Nacional que não possuem uma orientação ideológica específica e tem como objetivo assegurar uma proximidade ao Poder Executivo de modo que este lhes garanta vantagens e lhes permita distribuir privilégios por meio de redes clientelistas.
Flexibilização da estabilidade
São propostos cinco vínculos jurídicos com o Estado:
Vínculo de experiência – tem um período diferente da contratação;
Vínculo com prazo determinado – vai possibilitar a diminuição de pessoal;
Vínculo com prazo indeterminado – para o desempenho de determinadas atividades chamadas contínuas que não sejam típicas de Estado;
Cargo típico de Estado – com prazo indeterminado, com algumas garantias e deveres diferenciados restritos a servidores que tenham como atribuição o desempenho de atividades próprias de Estado;
Cargo de liderança e assessoramento – que são aqueles cargos comissionados e as funções de confiança que já existem.
Sem estabilidade
Para o professor, uma questão fundamental é definir quais as carreiras típicas de Estado.
“Apenas elas que vão manter a estabilidade no exercício das funções públicas. A estabilidade no cargo é o que caracteriza a presença hoje no serviço público. Todas as outras carreiras que não serão consideradas como típicas de Estado vão estar sujeitas a essa nova determinação. Portanto, instabilidade, contratos mais precarizados, contratos por tempo determinado, ou seja, nenhuma garantia de manutenção no cargo público.”
Wagner Romão informa que, de acordo com o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), as carreiras são as seguintes:
Na fiscalização agropecuária e tributária, nas relações de trabalho, as carreiras ligadas a arrecadação, finanças e controle, as carreiras de gestão pública, de comércio exterior, de segurança pública, de diplomacia, de advocacia e defensoria pública, de regulação, da política monetária, a inteligência de Estado, planejamento e orçamento, a magistratura e o ministério público.
“Ou seja, na proposta colocada pelo governo, todas as outras carreiras que não sejam caracterizadas como carreiras típicas de Estado vão ficar à margem, e há possibilidade de haver uma flexibilização da estabilidade, que é característica do serviço público e que coloca o serviço público a salvo das intempéries políticas que podem ocorrer na mudança de mandato para outro.”
Ele chama a atenção para as carreiras dos setores da educação e da saúde que estarão sujeitas à perda da estabilidade.
“Imagine, somos mais de 600 mil municípios hoje, se a gente romper com a característica da estabilidade no serviço público, a gente vai assistir a uma troca, por exemplo, nas carreiras de professor, médico, das pessoas que trabalham na educação e na saúde. Nós vamos poder assistir a cada troca de governo, seja nos três níveis, esse tipo de política de toma lá dá cá que por enquanto o serviço público está a salvo na maioria das atividades que promove.”
“Vocês que são trabalhadores da saúde, educação e tecnologia, é muito provável que essas carreiras não sejam classificadas como carreiras típicas de Estado. E, portanto, podem vir a perder essa característica da estabilidade no serviço público.”
Centralização de poder
Outro ponto extremamente importante para o professor está relacionado às atribuições do presidente da República.
“Essa reforma tal qual está colocada amplia bastante as atribuições do presidente da República, ou seja, ela centraliza no Executivo federal algumas ações e funções que atualmente o presidente da República compartilha com o Congresso Nacional.”
O presidente vai poder, mediante decreto, extinguir cargos de ministro de Estado, cargos comissionados, cargos de liderança e assessoramento de funções ocupados ou vagos. E pode criar, fundir, transformar ou extinguir ministérios e órgãos diretamente subordinados à Presidência da República.
“É o mais grave: o presidente passa, a partir da aprovação dessa reforma, a ter o poder de extinguir, transformar e fundir entidades da administração pública, autárquica e fundacional. Enfim, o presidente vai ficar autorizado a extinguir qualquer autarquia sem que isso passe pela autorização do Congresso Nacional. É o que tem acontecido quando há iniciativa da Presidência.”
“Universidades federais e os institutos federais de ciência, tecnologia e inovação, todos eles poderão ser extintos a partir de um decreto presidencial. Então o que estamos vendo é uma centralização do poder na Presidência da República.”
O desmantelamento das universidades e institutos está ocorrendo. “Já vemos isso toda semana. É uma precarização, um desmonte das universidades, dos institutos federais, de instituições como o Ibama, o ICMBio e tantas outras autarquias. E agora passa a haver a possibilidade, se aprovada essa reforma administrativa, de que o presidente da República numa canetada faça a extinção definitiva dessas autarquias. Então esse é um ponto extremamente preocupante dessa reforma que está sendo proposta.”
Participação da iniciativa privada
Outro aspecto grave levantado pelo professor é o aumento da participação da iniciativa privada nos assuntos do Estado.
“Tem um dispositivo nessa PEC 32 em que o governo pretende aumentar expressivamente a participação da iniciativa privada no serviço público. Ou seja, a qualquer atividade que não seja algo relacionado às carreiras típicas de Estado se abre a possibilidade inclusive de compartilhamento de estrutura física e de recursos humanos de particulares entre o governo e a iniciativa privada. Se abre a possibilidade de que uma determinada cooperativa de médicos e/ou uma cooperativa de professores possa, por exemplo, assumir uma escola ou até mesmo todo um sistema municipal, estadual ou quem sabe até federal de educação e de saúde.”
Romão relata que isso já ocorre na própria saúde pública.
“Temos municípios que praticamente terceirizam suas atividades ou para cooperativas ou para organizações sociais que são criadas para exatamente ocupar esse espaço onde o Estado está deixando de atuar. Trata-se, portanto, na reforma, da continuidade desse desmantelamento de destruição do Estado brasileiro que nós estamos vendo desde o início do governo Bolsonaro, e já antes no governo Temer com a edição da Emenda 95, que foi o marco do início da destruição do Estado brasileiro desde dezembro de 2016, quando foi aprovada.”