Legado da ditadura que faz 61 anos vai da militarização das PMs à devastação da educação pública

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Entrevistas feitas por jornalista do Nepp-DH/UFRJ traça um painel dos efeitos devastadores da ditadura civil-militar deflagrada entre 31 de março e 1º de abril de 1964

Em entrevista ao jornalista Pedro Barreto, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos, Michel Misse, que é professor aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), aborda o legado da ditadura na área da segurança pública.
Misse menciona o Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, que muda a natureza da atuação das polícias militares, ao definir entre as suas atribuições, a atuação ostensiva, preventiva e repressiva. “A Polícia Militar era uma força aquartelada. Não fazia operações na rua de repressão ao crime. Antes, isso era uma atribuição da Guarda Civil e da Polícia Civil”, esclarece.
Ele relaciona aquele momento ao atual contexto da violência estatal contra a população negra e periférica. “As PMs trazem para o cenário civil a lógica do ‘inimigo interno’. Para os militares, o inimigo deve ser eliminado. No entanto, o que acaba ocorrendo é que a própria população, que deveria ser protegida, se torna alvo da violência perpetrada pela polícia”, afirma.
Mesmo após quatro décadas da “redemocratização”, a militarização das polícias permanece. Ou seja: “Quando acaba a ditadura, a polícia militar não volta para os quartéis. Hoje, continuamos com a mesma concepção militarista na área da segurança”, diz o professor.

Prisões, torturas…
Pedro Barreto entrevistou também o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Nepp-DH) da UFRJ. Cunca é sobrinho do ex-deputado Luiz Fernando Bocayuva Cunha, líder do governo João Goulart cassado pelo regime militar.
“Os 61 Anos do Golpe de 1964 mostram que as forças e a memória das nossas lutas ainda estão aqui. A presença da tortura, do desaparecimento, da execução sumária e do aprisionamento ainda nos mantém no círculo de ferro da dominação, com apartacão social, racial e espacial”, analisa Cunca Bocayuva.
Luta por reparação
A entrevistada com Rejane Nogueira, jornalista, mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH) da UFRJ, expôs a luta por reparação. Ela é filha do preso político Ailton Benedito de Sousa, então estudante de Direito, militante da juventude do PCB e também um dos fundadores do IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras).
Durante a ditadura civil-militar, Ailton foi preso por agentes do Cenimar (Centro de Informações da Marinha). Torturado na prisão, foi monitorado por agentes do Estado, mesmo depois da promulgação da Constituição de 1988, ou seja, posteriormente ao período que conhecemos como “redemocratização”.
“Como filha de preso político, o que eu posso esperar é que o Estado brasileiro reveja a Lei de Anistia (que garantiu a impunidade de torturadores) e que os perpetradores de tamanho horror sejam responsabilizados, para além do pedido de desculpas. Isso é fundamental para que não vivamos mais momentos como aquele de violação e de esquecimento”, afirma.

Universidade pública como alvo

Pedro Barreto mostra também em seu texto como o desmonte da educação pública em favor do ensino privado foi mais uma herança da ditadura, em entrevista com o professor Roberto Leher, da Faculdade de Educação (FE) e ex-reitor da UFRJ.
Na entrevista, Leher cita os acordos firmados entre os governos brasileiro e dos Estados Unidos, durante os anos 1960 e 70, como o estabelecido entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a United States Agency International Development (Usaid), o chamado Acordo MEC/Usaid, que resultaram na reforma universitária de 1968.
“Uma vez concretizado o golpe, a ditadura buscou estancar o movimento em prol da reforma universitária que vinha ganhando corpo no país. A brutal repressão sobre a UnB é uma evidência de que a perspectiva de que as universidades estivessem vinculadas a um projeto de nação pleno de aberturas para o futuro, por meio de reformas estruturais, não seria tolerada. As cassações de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Celso Furtado pelo AI-1, ainda em 1964, comprovam isso”, conta Leher, a respeito do projeto da repressão sofrido por professores e estudantes da Universidade de Brasília, considerada pelos militares como “foco do pensamento esquerdista”.
Leher explica aquele momento em que o ensino superior privado ganha incentivos: era mais interessante ao poder vigente a formação de uma mão-de-obra acrítica, mas focada no preenchimento de vagas para o mercado de trabalho, do que de trabalhadores e pesquisadores qualificados criticamente. “A ditadura, paulatinamente, foi viabilizando o setor privado massivo, por meio do vestibular classificatório, isenções no imposto de renda e, um pouco adiante, do Crédito Educativo. Se antes do regime militar o setor privado não alcançava 40% das matrículas (em um universo muito reduzido de estudantes), em meados da década de 1970, as matrículas públicas e privadas estavam empatadas. No início dos anos 1980, as matrículas privadas chegaram a 60%”, pontua.
Reitor da UFRJ no período 2015-2019, Leher acredita que o desinvestimento na educação superior nos dias atuais surgiu naquele momento como política de Estado.
“Em resumo, ainda não realizamos o duro ajuste de contas com os terríveis legados da ditadura empresarial-militar sobre as universidades”, completa Leher.

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