“Um sopro de esperança”, diz Linda Brasil sobre eleição de 25 pessoas trans no país

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Em entrevista ao Brasil de Fato, a vereadora mais votada de Aracaju comemora o resultado das urnas: “Momento histórico”

Matéria retirada do Brasil de Fato. 

 

Um dia após o resultados das eleições, Linda Brasil não esconde o tom alegre em sua voz. Não é para menos: com 5.773 votos, a candidata do PSOL foi a vereadora mais votada de Aracaju, em Sergipe.

Linda se soma a outras 24 pessoas trans que foram eleitas em 22 municípios do país em um pleito histórico.

Em 2016, de acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), somente 8 candidatos chegaram às casas legislativas. Um aumento de 200%.

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Linda comemora o resultado das urnas. “Foi como se a população tivesse dado uma resposta a esse reacionarismo e ao fascismo que querem tomar conta. É muito simbólico, um momento histórico”, afirma.

Morando no centro da capital sergipana, ela conta que consegue ver a Câmara Municipal de Aracaju da janela de sua casa. Animada, Linda fala sobre os projetos e planos que ganharão vida naquele espaço que se tornará mais representativo em 2021, assim como em outras cidades brasileiras.

“É um sopro de esperança nesse momento conturbado da política brasileira. Um sopro de esperança para que outras pessoas comecem a acreditar na política, que não se desmotivem, que acreditem que podemos contribuir com a transformação da nossa sociedade”, diz.

Além de Linda, a Professora Duda Salabert (PDT) também foi a candidata mais votada em Belo Horizonte (MG).  Apesar do estado do Sergipe ser o primeiro do Nordeste e o segundo do Brasil em número de assassinatos de pessoas trans e travestis, de acordo com dados da Rede Trans de 2019, a vereadora relata que a campanha foi muito bem recebida pela população.

Para ela, a eleição expressiva das candidaturas trans abre caminho para a renovação do sistema político.

“Não tem mais volta. Isso mostra pra sociedade que não vamos voltar mais para as esquinas e nem para os armários. Chegou a nossa vez de ocupar os espaços que sempre nos foram negados. O significado disso tudo é que não vamos retroceder e que vamos provocar transformações efetivas na política do Brasil”, ressalta a ativista, que também é mestre em Educação.

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato – Como recebeu a notícia de que se tornou a primeira vereadora trans e a candidata mais votada de Aracaju? O que sua eleição representa?

Linda Brasil – Foi surpreendente. Eu estava confiante porque já tinha sido candidata em 2016 e não fui eleita por causa da legenda. Em 2018 fui candidata a deputada estadual e tive uma votação expressiva, fui votada em todos os municípios.

Eu estava confiante mas quando fecharam as urnas e saiu que, além de ser eleita eu era a mais bem votada, foi como se a população tivesse dado uma resposta a esse reacionarismo e ao fascismo que querem tomar conta.

É muito simbólico, um momento histórico. Estou aqui sem encontrar uma palavra para definir o que está acontecendo não só comigo mas no Brasil com 25 pessoas trans.

É um sopro de esperança nesse momento conturbado da política brasileira. Um sopro de esperança para que outras pessoas comecem a acreditar na política, que não se desmotivem, que acreditem que podemos contribuir com a transformação da nossa sociedade.

A minha eleição e as de outras pessoas trans no país todo representam uma renovação. O início de uma transformação efetiva na política brasileira que sempre foi dominada pelas mesmas elites e pelas mesmas pessoas.

É como se a população tivesse dado uma resposta ao reacionarismo e ao fascismo 

Ocupamos esses espaços que sempre nos foram negados, principalmente os espaços de decisão, e sendo uma mulher feminista, aguerrida, que não vai aceitar essa estrutura construída à base de tanto machismo, racismo, LGBTfobia, de tanta exploração e opressão.

Significa que é um novo momento na política brasileira, em especial aqui em Aracaju.

Foram duas capitais do Brasil com pessoas trans como as mais votadas. A Duda é professora, eu também. Lutadoras LGBTIA+. Isso é muito significativo e importante. É fantástico. Uma vitória gloriosa.

A base da LGBTfobia é a misoginia, o sexismo e a falta de educação

É uma responsabilidade muito grande. Nunca quis ocupar esse espaço por ocupar, para ser mais uma. Quero ocupar para fazer a diferença, para provocar a transformação e o diálogo. Ainda assim elegemos uma bancada conservadora aqui, pastores… mas vou tentar também, a partir do trabalho que já faço em escolas sobre conscientização, sensibilizar os parlamentares que se elegeram sobre a importância desse debate.

Sobre a importância da desconstrução do machismo, das discussões e estudos de gênero para diminuirmos a violência. Para mim, a base da LGBTfobia é a misoginia, o sexismo e a falta de educação.

Como mestre em Educação, posso contribuir com colegas e parlamentares, aqueles que estiverem abertos, evidentemente, para construirmos projetos nessa forma. Projetos inovadores, ligados à área dos direitos humanos no geral, focando na educação.

Só vamos construir uma sociedade que respeita os direitos humanos em uma sociedade com acesso à informação, em que se consiga pensar e refletir sobre papéis transformadores. Que possibilite às pessoas se empoderarem, terem consciência de seus direitos, da importância da luta, das políticas públicas que beneficiam toda a população.

É com esse sentimento que eu me coloquei na disputa e estou aqui para chegar no legislativo de Aracaju.

 

O Estado do Sergipe é o primeiro do Nordeste e o segundo do Brasil em número de assassinatos de pessoas trans e travestis, de acordo com dados da Rede Trans de 2019. Como sua campanha foi recebida na capital? Houve algum tipo de agressão, algum percalço?

[Minha eleição] é uma resposta a esse dado, a esse comportamento transfóbico que acontece em Sergipe. Mas a campanha, em geral, me surpreendeu. Além das redes sociais, em que focamos muito, estava receosa de ir nas ruas.

Mas quando ia no centro, região em que eu moro, toda vez que eu descia e estava com um cartaz em que bordei meu número, as pessoas vinham e me chamavam pra tirar foto.

Senti a necessidade de ir nos bairros da periferia, de conversar, de conscientizar sobre a importância de votar e tive uma receptividade incrível. Fui com medo em alguns bairros mas tive uma boa receptividade. E por isso esse resultado expressivo.

A questão da campanha não é só ir atrás de voto, é acreditar que o processo político pode despertar a consciência das pessoas sobre a importância do voto. O voto é nossa única arma para termos uma sociedade com garantia de direitos, votando em pessoas conscientes que vão apresentar e votar em projetos que beneficiem a todos.

:: Vereadoras negras e trans estão entre as candidaturas mais votadas em 13 capitais ::

Aqui na periferia temos uma dificuldade muito grande em relação ao saneamento básico, ao esgoto. Muitos bairros sem tratamento. E nós sabemos como um vereador pode contribuir para que as pessoas tenham o mínimo de condições de sobrevivência e de oportunidade.

Eu fui empurrada para viver na prostituição. Já me fingi de morta para sobreviver a ataques de violência que já sofri na vida. Estou com 47 anos e digo que sou sobrevivente. Já sobrevivi 12 anos porque a expectativa de vida da população trans no Brasil é de 35 anos.

Nosso sentimento é o de proporcionar, por meio da fiscalização e cobrando o Executivo, políticas públicas que deem oportunidade às pessoas. Que elas não precisem se expor tanto a fazer algo como eu fiz. E não fui [para a prostituição] de forma consciente, não tive escolha. Eu quero que as pessoas tenham escolha, que elas possam sonhar.

Quando comecei a assumir minha identidade de gênero, pensei na dificuldade que teria na minha vida. Antes disso eu tinha o sonho de ser arquiteta, sempre gostei de desenho, de criar. Esse meu sonho foi, de certa forma, quebrado. Ele sumiu, desapareceu.

Ser travesti, ser uma mulher trans, é um caminho para a prostituição. Eu achava que ser travesti era ser prostituta, fui iludida para isso. Não quero mais que as pessoas se iludam.

Já me fingi de morta para sobreviver a ataques de violência que sofri na vida. Estou com 47 anos e digo que sou sobrevivente. Sobrevivi 12 anos porque a expectativa de vida da população trans no Brasil é de 35 anos

Como muitas vezes acontecem com jovens que são evadidos de espaços escolares porque a educação não é um local acolhedor, que estimula a presença dos jovens. Temos muitos projetos pensando nisso, em dar oportunidade para que todos possam decidir os caminhos a seguir e termos uma sociedade com mais igualdade e justiça social.

E o que te levou a entrar para a política? Qual sua trajetória até chegar à Câmara de Aracaju?

Em 2013, quando sai da prostituição, eu fiz o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] e fui a primeira mulher trans a entrar na Universidade Federal de Sergipe [UFSE]. E quando eu entrei, no primeiro dia de aula, lembro como hoje, 5 de março de 2013, estava ansiosa sobre a questão do nome social.

Não tinha retificado ainda. Procurei a instituição para utilizar o nome social porque não queria ser constrangida, de me chamarem por um nome que não correspondia a minha identidade de gênero. E a instituição se negou, disse que o sistema puxava do CPF e me aconselharam a pedir a cada professor, em cada semestre, uma média de 7 a 8, que colocassem do lado meu nome social.

Fiquei indignada de ter que ficar explicando a situação mas foi isso que eu fiz. No primeiro dia de aula, foram 3 aulas. As duas primeiras foram professoras super receptivas. Uma delas já tinha percebido e por isso que é muito bom o professor ver as questões individuais dos alunos.

Mas o terceiro professor, quando fui conversar com ele sobre o uso do meu nome social, gritou bem alto na frente de quarenta alunos: “Mas se seu nome é esse, e gritou meu nome de registro antigo, como vou te chamar de Linda Brasil?” e repetiu o nome.

Aquilo me causou uma indignação tão forte que pensei: “Se está acontecendo em uma universidade pública federal, imagine o que não estava acontecendo no ensino médio e fundamental?”.

Eu processei a universidade e, por meio desse processo, acabou sendo criada uma portaria que regulamentou o uso do nome social. A partir daí comecei a entrar na luta estudantil para que outros estudantes tenham condição de se manter na universidade.

Entrei em um coletivo de mulheres de Aracaju e fui a primeira mulher trans a entrar em um coletivo de mulheres cis. Conheci militantes feministas de Sergipe, aguerridas, que faziam ato no 8 de março, na Marcha das Vadias e isso me incentivou.

Me despertou a necessidade de me filiar partidariamente. Eu tinha uma afinidade muito grande com o PSOL por causa do Jean Wyllis, Marcelo Freixo… parlamentares que fazem denúncias, que não querem reproduzir o sistema que está aí.

Eu nunca pensei em minha vida em ser política. Conhecendo as militantes feministas do PSOL, isso me incentivou. Em 2016 eu já me coloquei como candidata pela primeira vez como vereadora, tive 2.308 votos e não fui eleita por causa da legenda. Tive mais votos que quatro vereadores que foram eleitos.

Em 2018, fui candidata a deputa estadual, tive 10.107 votos e fui votada em todos os 75 municípios. E agora veio essa conquista histórica.

Quais serão as principais bandeiras do mandato e os desafios já sinalizados?

Eu estou comprometida com a Agenda Marielle Franco, desenvolvida pelo Instituto Marielle Franco, construída a partir das práticas políticas de seu legado. A agenda tem como base a questão dos direitos humanos, as políticas públicas em relação às mulheres, creches e turnos diferenciados, as bandeiras da população LGBT, da população negra e principalmente periférica.

E nisso as políticas públicas ligadas à arte serão desenvolvidas. Temos vários projetos na área da educação, para levar debates e discussões para toda a sociedade, não só para alunos, mas também professores e gestores precisam de informação, até mais que os próprios jovens.

Na campanha tive uma receptividade dos jovens muito grande. Desde que eu entrei na UFSE em 2013, faço palestras, debates, rodas de conversa.

Já participei em muitas escolas públicas e privadas no estado. Só o fato de entrar nesse espaço e conversar, os professores me davam o feedback de que começava um processo de desconstrução, de diálogo e de pergunta dos alunos.

São formas de levarmos não só de um jeito formal, dos conceitos, mas de levar a informação por meio da arte, que tem um poder muito grande de conscientizar, como a música e o teatro.

Outra questão é a da saúde, da garantia do Sistema Único de Saúde (SUS). Percebemos que aqui no município estão iniciando um desmonte do SUS em algumas unidades de saúde.

Temos também projetos ligados ao meio ambiente, como a questão das ciclovias, do transporte público, projetos ligados a passagem gratuita aos desempregados. A questão da moradia, faço um trabalho nas ocupações do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], tenho uma ligação com as pessoas que ali moram, principalmente mulheres e LGBTs dos acampamentos.

Uma coisa importante é que criamos um formulário na pré-candidatura. “O que você pensa para Aracaju?”. Através dele, várias pessoas que acreditavam e acreditam no nosso projeto, apoiadores, apresentaram sugestões, propostas, que foram catalogadas e filtradas.

O desafio é justamente fazer com que as pessoas voltem a acreditar na política

Junto com a Agenda Marielle, vamos ver projetos Brasil afora que deram certo e foram inovadores. Eu acredito em um mandato de forma coletiva, participativa, com diálogo para construirmos esses projetos. Não impô-los para a sociedade mas que possamos discutir com ela, principalmente nas periferias, quais são as demandas mais importantes para cada localidade e região.

O desafio é justamente fazer com que as pessoas voltem a acreditar na política. No processo da campanha eu senti que as pessoas estavam muito desacreditadas. “Todos são ladrões, ninguém presta, nada vai mudar”.

Também vamos promover muitas audiências públicas debatendo pautas importantes em que as pessoas possam se sentir ouvidas e partícipes do Legislativo. Que elas possam ocupar esses lugares e reivindicar políticas públicas para suas comunidades.

Qual a perspectiva para essa onda de diversidade na política em meio à forte presença da direita?

Não tem mais volta. Isso [as candidaturas eleitas] mostra pra sociedade que não vamos voltar mais para as esquinas e nem para os armários. Chegou a nossa vez de ocupar os espaços que sempre nos foram negados. O significado disso tudo é que não vamos retroceder e que vamos provocar transformações efetivas na política do Brasil.

 

Vereadora eleita, Benny terá o desafio de ampliar o debate de raça, classe e gênero na Câmara de Niterói – Foto: Rafael Lopes
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