Além das mortes por asfixia, pesa sobre o general e ex-ministro o incentivo ao tratamento precoce na capital amazonense
No fatídico 14 de janeiro de 2021, nas UPAs de bairro e nos principais hospitais de Manaus, cilindros de oxigênio vazios foram entregues aos familiares dos pacientes para que tentassem enchê-los em tempo de evitar as mortes. A empresária Denise Azevedo não conseguiu. A irmã dela morreu uma hora antes da chegada do cilindro cheio.
“O médico pediu para isolar ela, porque o que eles estavam fazendo era aplicar morfina, e foi o que ele falou: ´Vou aplicar morfina para que ela morra melhor` “, relembra.
Dias antes das mortes por asfixia, um e-mail enviado pela empresa White Martins foi ignorado pelo Ministério da Saúde. A empresa solicitava apoio logístico imediato para o transporte de 350 cilindros de oxigênio gasoso à Manaus. De 8 a 14 de janeiro, das 1057 mortes registradas na capital amazonense, 46% foram em decorrência da Covid-19, segundo a Prefeitura Municipal.
“Um homicídio, um massacre. Porque o Estado sabia, os médicos sabiam que faltaria oxigênio. O Estado é completamente responsável por tudo que aconteceu. Por inúmeras vidas terem ido embora”, opina Azevedo.
A criação da CPI
A crise na capital amazonense foi o ponto de partida para a criação da CPI da Covid no Senado, que investiga a conduta do governo federal durante a pandemia. O general Eduardo Pazuello, que foi Ministro da Saúde entre maio de 2020 e março de 2021, é tido como testemunha central pelos senadores.
Ainda em janeiro, um inquérito foi aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar a conduta de Pazuello no colapso em Manaus. No mês passado, foi a vez do Ministério Público Federal ajuizar uma ação contra o general pela omissão no fornecimento de oxigênio aos pacientes.
“Aquilo é que subiu a temperatura, e disse olha: ‘Ou a gente investiga agora, ou nós vamos ter outras Manaus por aí no Brasil, que não poderão ser evitadas a tempo, porque o governo vai considerar que pode fazer o que quiser’. Então, essa foi a ponta do iceberg que leva a uma investigação de tudo que está por trás do ápice do caos representado por Manaus”, afirma o senador Jean-Paul Prates (PT-RN), líder da minoria na casa.
Entre as incertezas sobre o depoimento de Pazuello nesta quarta-feira (19), há uma convicção: o ex-ministro da Saúde chegará à CPI da Pandemia fragilizado. No dia 4 de maio, quando alegou ter mantido contato com dois assessores contaminados com Covid-19, o militar escapou do depoimento. No entanto, as duas semanas municiaram os senadores, que agora o interrogarão com mais informações fornecidas por outros agentes do governo.
Amparado por um Habeas Corpus preventivo, concedido pelo ministro Ricardo Lewandovski, do Supremo Tribunal Federal (STF), o militar pode ficar em silêncio e não responder as perguntas dos senadores. No entanto, de acordo com o advogado de Pazuello, Zozer Hardmann, o ex-ministro da Saúde deve responder todas as dúvidas dos parlamentares.
Em Brasília, é público que Pazuello recebeu treinamento de assessores do Palácio do Planalto para participar da CPI da Pandemia. Os senadores da oposição, em especial o relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), não escondem que o depoimento do ex-ministro da Saúde pode ser o mais comprometedor para o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Preocupada, a tropa de choque do governo na CPI, lidera por Ciro Nogueira (PP-PI) e Eduardo Girão (Podemos-CE), tentou retirar Calheiros da relatoria da CPI da Pandemia. O alagoano é responsável pelas perguntas que abrem toda sessão e tem utilizado ao menos uma hora para elaborar suas questões, irritando o Palácio do Planalto.
Tratamento precoce
Além das mortes por asfixia e da recusa à oferta de vacinas pela Pfizer, pesa contra Pazuello o incentivo ao tratamento precoce. Com a presença do militar, uma comitiva do Ministério da Saúde chegou a lançar em Manaus, dias antes do colapso nos hospitais, um aplicativo que incentivava o uso dos remédios sem eficácia cientificamente comprovada.
Na época, um ofício enviado à secretaria de Saúde de Manaus, por Mayra Pinheiro, secretária de Pazuello na pasta, pressionou a gestão municipal pela utiilização dos antivirais. No documento, a chamada “Capitã Cloroquina”, que também solicitou ao STF permanecer em silêncio na CPI, definiu como inadmissível a não adoção da orientação.
“Isso não foi em um momento qualquer. Não é em um momento em que queriam tratar precocemente a doença. Foi em um momento em que faltava oxigênio, gente. Um momento em que o Ministério das Relações Exteriores negava, e em que o Ministro da Saúde dizia que o Brasil não tinha avião suficiente”, aponta Vanessa Grazziotin, ex-senadora do PCdoB, entre 2011 e 2019, pelo estado do Amazonas.
Imunidade de rebanho
Mayra Pinheiro e outras autoridades amazonenses estão intimadas pela CPI para esclarecer fatos sobre o tratamento precoce e sobre a ideia de imunidade de rebanho.
O vice-governador do Amazonas, Carlos Almeida Filho (sem partido), chegou a revelar, na última semana, que a orientação foi incorporada pelo governador Wilson Lira (PSC), após pressão do Planalto. O governo estadual nega a acusação.
“É triste ver a subserviência do governador ao presidente Bolsonaro. Ele não fez, e não promoveu no momento certo o distanciamento. E aí tem sim uma parte por orientação do governo federal. O Bolsonaro mandava, o Pazuello obedecia. Pazuello mandava, o governador do Amazonas obedecia. Ele mesmo diz isso. Eles fizeram lá valer a teoria. As pessoas pegam a Covid e elas mesmo se autoimunizam e aí fica tudo bem”, argumenta Grazziotin.
Além de ter sido um campo aberto para o surgimento de uma cepa mais letal do vírus, a P1, Manaus já havia presenciado um primeiro colapso de internações e sepultamentos, entre março e abril de 2020. Para pesquisadores da Fiocruz Amazônia e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o município ainda deverá chegar à terceira onda de contaminação.
“Nós estamos falando parece que do passado, mas com a iminência de isso voltar a se repetir. Então, é para isso que a CPI volte seus olhos, e entenda que o Amazonas é um caso especial. Enquanto continuar esse secretário, esse governador, a população continuará em risco”.
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com o Ministério da Saúde e com o Governo do Amazonas, ainda tentou estabelecer contato com a assessoria de Eduardo Pazuello, mas não obteve respostas até o fechamento da reportagem.
Edição: Isa Chedid