Cinco milhões de africanos sequestrados no Brasil, o último país do continente a abolir a escravidão
“O Brasil foi o principal destino dos africanos escravizados para as Américas e o último país do continente a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888, dois anos depois de Cuba e mais de 20 anos depois dos vizinhos”. Com essa informação o intelectual e militante Carlos Alberto Medeiros, iniciou a sucinta retrospectiva sobre a trajetória dos negros sequestrados da África nas terras brasileiras, e transformou a rotineira reunião híbrida do GT Antirracismo da entidade, na quarta-feira, 21 de maio, em uma profícua aula de história. O palestrante falou via internet.
“Estimativas indicam que teriam vindo 10 milhões de escravizados para as Américas, destes, 5 milhões para o Brasil. Portanto, a escravidão é um fenômeno muito presente em todas as regiões do país, principalmente acompanhando os ciclos da economia brasileira, como do ouro, da cana de açúcar e do café. Todos esses ciclos se basearam na escravidão de africanos”, acrescentou o estudioso.
Carlos Alberto Medeiros é ex-aluno de graduação da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO) e de doutorado em História Comparada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS). É mestre pela UFF em Ciências Jurídicas e Sociais, tradutor e autor do livro “Na lei e na raça: relações sociais Brasil-Estados Unidos”. Seu campo de atuação preferencial é com os temas preconceito, discriminação e racismo no Brasil e no mundo.
“Não tive professores negros na ECO/UFRJ. Havia um na faculdade, Muniz Sodré, mas não tive aulas com ele. Na verdade, não tive professores negros no primário e no ginásio. Curiosamente, isso só ocorreu na Escola de Aeronáutica, quando fui cadete, e em plena ditadura. Na universidade, isso só viria a ocorrer no doutorado em História Comparada no IFCS, e que se tornaram meus orientadores: Wallace de Moraes e Flávio Gomes”, disse. Medeiros foi aluno da ECO de 1969 a 1972.
Plateia
Nesse dia, além das trabalhadoras e trabalhadores, a plateia no Espaço Cultural da entidade foi composta pelos alunos da disciplina Fundamentos da Capoeira, da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ, por orientação da professora e pesquisadora do Departamento de Lutas, Livia Pasqua.
O convite foi feito pela técnica-administrativa da Secretaria de Extensão do Instituto de Geociências (IGEO) e mestranda do Programa História da Ciência e das Técnicas Epistemológicas, Rosi da Cruz.
Um histórico de revoltas (box)
Segundo Medeiros, houve muitas revoltas dos escravos país afora, especialmente nas regiões onde era mais intensivo o uso da mão de obra escravizada, surgindo os quilombos (comunidades de escravos fugitivos que se estabeleciam em áreas isoladas e criavam suas próprias sociedades), que em outros países da América Latina são chamados de palenques e marrons. O mais importante quilombo brasileiro foi o de Palmares, que durou cerca de cem anos, localizado na Serra da Barriga, atualmente estado de Alagoa, construído em 1655. Contava com o maior exército antes das guerras da independência – 5 mil a 9 mil homens –, e uma população de 20 mil pessoas. “Zumbi dos Palmares foi o grande líder e a data da sua morte, 20 de novembro, se transformou em feriado nacional: o Dia da Consciência Negra”, destacou o palestrante.
Apesar das lutas de resistência, o principal fator da abolição da escravidão chegar ao Brasil foi a Revolução Industrial, que começou na Inglaterra na metade do século XVIII, a partir da máquina a vapor. “A máquina a vapor não apenas substitui o trabalho humano, como aumenta, exponencialmente, o número de artigos colocados no mercado e em função disso a necessidade de expandir os mercados consumidores para que esses produtos não ficassem condenados a prateleiras dos estabelecimentos. Por isso a Inglaterra exerce pressão sobre o governo do Brasil para primeiro, abolir o tráfico de escravizados e depois a escravatura”, explica.
Surgimento dos movimentos
Foram tempos de muitas tensões e injustiças. “Pessoas que não podiam mostrar vínculo de emprego eram presas, e essa era exatamente a condição de ex-escravizados que não encontravam espaço no mercado de trabalho. A partir disso, tem início uma nova fase da luta dos negros para melhorar a sua posição na sociedade, para eliminar a discriminação. Começam a surgir os movimentos, organizações e entidades, também uma imprensa negra, e os clubes de negros, que eram associações criadas para os negros pudessem ter seus espaços de lazer, divertimento e de encontro”.
Na avaliação de Medeiros, a Frente Negra Brasileira, fundada em São Paulo em 1931, foi a principal organização pós-escravidão por oferecer multiplicidade de atividades. A FNB tinha e filiais em outras cidades e estados, e chegou a ter 8 mil membros. “Ali se fazia não apenas atividades político e ideológico, mas de clube de dança, grupos de teatro, jovens iam lá para se encontrar e também havia prestação de atendimento médico-odontológico. As pessoas eram estimuladas a se inscreverem como eleitores – nessa época o voto não era obrigatório”.
Um partido negro
Em 1936, a frente vira um partido. “Nós tivemos um partido político negro no Brasil até 1937, quando houve o golpe do Estado Novo, que durou até 1945, e fechou a frente e todos os partidos políticos. Na década de 1940, foi fundada uma grande organização, o Teatro Experimental do Negro, em 1945, sob liderança do grande intelectual, militante do movimento negro no século XX, talvez um dos grandes e todos os tempos, o Abdias Nascimento. O objetivo era, ao mesmo tempo, proporcionar a atores negros a possibilidade de exercer os papéis principais, que era absolutamente impossível na época, e também contribuir para conscientizar a sociedade brasileira, particularmente a população negra, sobre a questão racial”.
OLHO
“Até essa época, o grande inimigo — e continuou sendo por algum tempo –, o grande obstáculo a qualquer avanço na área da questão racial no Brasil não era uma força armada, uma polícia; era uma ideologia, que depois foi denunciado como farsa da democracia racial. A ideia de que nós não tínhamos um problema racial no Brasil. Pessoas falavam que não havia preconceitos de cor, mas elas eram exceções, não representavam a alma da sociedade brasileira”.
Pesquisa da Unesco
Essa realidade começou a melhorar um pouquinho no início da década de 50, lembra o especialista no tema, em função de uma pesquisa da Unesco encomendada com o objetivo de mostrar a realidade racial brasileira. Trabalho que envolveu alguns dos principais sociólogos da época, como Florestan Fernandes, Otávio Ianno, Alberto Guerreiro Ramos, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique. Segundo Medeiros, também contribuiu para o despertar de uma consciência os crimes raciais praticados na Segunda Guerra Mundial.
“O resultado da pesquisa confirmou a ideia de que os negros no Brasil tinham sim problemas, não no nível do que havia nos EUA ou na África do Sul, que recentemente adotara o regime Apartheid. Na década seguinte, a gente tem o golpe de 64, que logo nas suas primeiras ações colocou o problema racial entre as questões de segurança nacional.
Políticas afirmativas
mudam o cenário
“Digo que o grande avanço que obtivemos quanto à questão racial foram as políticas de ação afirmativa, que não só mudaram significativamente a paisagem humana de nossas universidades públicas, mas — o que considero ainda mais importante — obrigaram a sociedade brasileira a discutir esse tema, tradicionalmente rejeitado tanto à direita quanto à esquerda do espectro político. Hoje ele está quase que diariamente presente em nossa imprensa escrita e televisada, com reflexos que incluem desde a agora frequente punição aos perpetradores de atos racistas até o aumento do número de repórteres e âncoras negros, e da presença de personagens negros como protagonistas na publicidade e nas novelas”, conclui Medeiros.
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