“A maior universidade federal do país mostra como se deve ter atitude com relação às cotas étnico-raciais implantadas com toda efetividade e de maneira correta.” Com esta declaração da reitora Denise Pires de Carvalho comemorou a aprovação, pelo Conselho Universitário (Consuni) – instância superior de deliberações da UFRJ –, na quinta-feira, 26, das normas que conduzirão a apuração de fraudes no sistema de cotas raciais para ingresso nos cursos de graduação da UFRJ. O texto final ficará pronto na sexta-feira, 27.
Na opinião do Sintufrj, a resolução aprovada é um avanço necessário para democratizar o acesso à Universidade e promover políticas afirmativas de fato, coibindo tentativas de fraude e de deslegitimação das cotas.
As denúncias sobre fraudes no processo de autodeclaração dos candidatos pretos e pardos deverão ser feitas exclusivamente à Ouvidoria da UFRJ, que as encaminhará à Pró-Reitoria de Graduação (PR-1). Dali, há dois caminhos a seguir: abertura de processo administrativo contra o suposto fraudador ou arquivamento (confira no final a íntegra do texto aprovado no link).
A Comissão de Heteroidentificação vai apurar a veracidade das autodeclarações, resguardando o amplo direito de defesa e contraditório. Porém, verificada a inconsistência entre a autodeclaração e a condição de fato do aluno, sua matrícula será cancelada e os autos serão encaminhados ao Ministério Público Federal para eventuais providências. Cabe ao Consuni a competência para o julgamento dos recursos em face da decisão da PR-1, que terá efeito meramente devolutivo.
Fraudadores sem punição
A decisão, aprovada com os votos da ampla maioria dos conselheiros e sob aplausos, foi considerada histórica e, segundo a reitora, não poderia ser mais postergada. Ela destacou o trabalho realizado pela Comissão de Heteroidentificação para Apuração de Fraudes e informou que, atualmente, há cerca de 400 processos em andamento: 180 dos quais analisados, com 90 pessoas identificadas como não aptas às cotas pelas quais ingressaram.
Mas faltava que o colegiado aprovasse uma regulamentação que garantisse os mecanismos de sanção aos fraudadores. Demorou tanto para que isso ocorresse que quase a metade deles já colou grau, perdendo o vínculo com a UFRJ.
O texto aprovado teve pequenas modificações no parecer final da Comissão de Legislação e Normas (CLN) por parte da bancada estudantil e do relator, o técnico-administrativo Francisco de Paula.
A reitora agradeceu à Câmara de Políticas Raciais da UFRJ e à Comissão de Heteroidentificação a participação na elaboração da proposta aprovada, citando o nome de todos os seus integrantes, especialmente da coordenadora Denise Góes. “Foram meses de trabalho”, disse ela.
O conselheiro Francisco Esteves também destacou o trabalho da CLN, da comissão e do grupo liderado pela técnica-administrativa. O professor contabilizou o envolvimento de cerca de 70 pessoas no processo que culminou na norma aprovada pelo Consuni.
A pró-reitora de Graduação, Gisele Pires, disse estar honrada em participar daquele momento histórico da UFRJ e defendeu a expressão “denúncia” no caso de possíveis fraudes, argumentando que este é o ponto de partida para uma apuração. “Não é uma simples reclamação”, ponderou.
A representante da bancada estudantil Juliana Paiva comentou que “o mais importante é que a UFRJ continue avançando nas políticas formuladas por e para negros e negras da universidade e da sociedade, e que a UFRJ seja uma universidade ativa no combate ao racismo e pulsante na luta antirracista”. A representante do Coletivo Negros da UFRJ, Maíza Kister, destacou: “A luta não é só nossa, a universidade deve ser antirracista, Não basta não ser racista. Tem que ser antirracista”.
“Mais um passo na luta antirracista”
Com esta afirmação, Denise Góes, coordenadora da Comissão de Heteroidentificação para Apuração de Fraudes e coordenadora da Câmara de Políticas Raciais, comemorou a decisão do Consuni. “A votação desta resolução era uma demanda que há muito tempo estava sendo aguardada, porque objetivamente recolocaria a comissão novamente no retorno de seu trabalho. Nós estávamos aguardando esta resolução”, disse ela.
Segundo Denise, a comissão entende que o processo de identificação (já aplicado nos mais recentes acessos à graduação da UFRJ) ficaria incompleto “se a gente então fechasse essa porta das fraudes. Caso contrário, estariam por um lado fazendo um trabalho absolutamente assertivo e, por outro, deixando uma janela aberta para que as fraudes continuassem acontecendo”.
“A votação de hoje coroou todo o esforço e a luta dos negros e negras da UFRJ voltados para a temática racial e para o controle social das políticas públicas de democratização do acesso. A gente agradece à Administração Central, que esteve ombro a ombro na elaboração desta resolução, o apoio incondicional, e avaliamos que avançamos, e que o trabalho e a luta continuam”, acredita Denise.
Para Denise, a UFRJ serve como espelho e exemplo: “É importante saudar a resolução. Agora, finalmente, fechamos portas e janelas. Fraudador nunca mais!, assim se espera”. A coordenadora destacou os dois servidores que, segundo ela, também se dedicaram ao trabalho da comissão: Frederico Nascimento e Vitor Matos.
A luta continua
A Câmara de Políticas Raciais e a Comissão de Heteroidentificação para Apuração das Fraudes emitiram nota sobre a decisão do Consuni, na qual apontam que a UFRJ é um exemplo a ser seguido. Mas manifestaram estranhamento pela ausência na sessão do Consuni de pessoa versada nas questões étnico-raciais e pelo fato de o relatório final destacar que os membros da Câmara foram os responsáveis por desenvolver, junto a outros atores, os processos de heteroidentificação e por formular a minuta da resolução votada. “Fomos lembrados hoje, mas não ouvidos”, diz o texto.
O que as normas estabelecem
Pelas normas sobre o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos pretos e pardos (o texto será finalizado no dia 27), as denúncias sobre eventuais fraudes às cotas raciais deverão ser feitas exclusivamente junto à Ouvidoria da UFRJ. Recebida as denúncias, a Ouvidoria deverá encaminhá-las à PR-1, que deverá convertê-las em processo administrativo ou arquivá-las.
A Comissão de Heteroidentificação vai apurar a veracidade das autodeclarações, resguardadas a ampla defesa e o contraditório. Porém, verificada inconsistência entre a autodeclaração e a condição de fato do aluno, sua matrícula será cancelada, e os autos serão encaminhados ao Ministério Público Federal para eventuais providências. Cabe ao Consuni a competência para o julgamento dos recursos em face da decisão da PR-1, que terá efeito meramente devolutivo.
Moção
O colegiado também aprovou, por ampla maioria, moção em que manifesta profunda consternação pelo assassinato de João Alberto Silveira Freitas. Diz o texto: “Mais uma entre tantas vidas negras perdidas com o mesmo tipo de violência. É fundamental reconhecer as feridas do racismo institucional e sistêmico no Brasil e sua origem na escravidão”.
“Nos manifestamos contra a violência, a discriminação e o racismo em suas formas individual, estrutural ou institucional. Ninguém deve ter sua vida em risco pela cor da sua pele, religião, orientação sexual, gênero ou deficiência.”
O texto foi produzido e aprovado originalmente pelo Instituto de Física e apresentado pelo representante dos professores titulares do CCMN, Nelson Braga, no Consuni.
VEJA A ÍNTEGRA DA RESOLUÇÃO APROVADA:
Versão preliminar da resolução
(A versão final deve ser divulgada nesta sexta-feira, 27)
CAPÍTULO I
Das Disposições Preliminares
Art. 1º A presente resolução estabelece normas sobre o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos pretos e pardos, visando, em especial, à efetivação do consubstanciado na Lei nº 12.711/2012.
Art. 2° A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Art. 3° O aluno tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;
II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;
IV – fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória à representação, por força de lei.
Art. 4° São deveres do denunciado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em
ato normativo:
I – expor os fatos conforme a verdade;
II – proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; e
III – prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos.
CAPÍTULO II
Da Comissão de Heteroidentificação
Art. 5° A Comissão de Heteroidentificação tem como função apurar a veracidade das autodeclarações, mediante procedimento de heteroidentificação, apreciar as alegações apresentadas pelo denunciado com expedição do relatório final e posterior encaminhamento à Pró-Reitoria de Graduação.
- 1º A Comissão de Heteroidentificação será constituída por cidadãos:
I – de reputação ilibada;
II – que tenham treinamento adequado; e
III – preferencialmente experientes na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo.
- 2º Os membros da Comissão de Heteroidentificação serão designados pela Reitora da UFRJ, que poderá delegar competência para que a Pró- Reitoria de Graduação faça a referida designação.
- 3º Os membros da Comissão de Heteroidentificação irão se reunir conforme calendário estipulado para cada processo.
Art. 6° A Comissão de Heteroidentificação será constituída de quinze (15) integrantes e deverá atender ao critério da diversidade, garantindo que seus membros sejam, preferencialmente, distribuídos por gênero e raça.
CAPÍTULO III
Do Procedimento de Heterodidentificação
Art. 7° Considera-se procedimento de heteroidentificação a identificação por terceiros da condição autodeclarada.
Art. 8° As denúncias sobre eventuais fraudes às cotas raciais deverão ser feitas exclusivamente junto à Ouvidoria da UFRJ
Art. 9º Recebida a denúncia, a Ouvidoria deverá encaminhá-la à PR-1, que deverá convertê-la em processo administrativo ou arquivá-la.
- 1° Tendo sido instaurado o processo, a intimação deverá conter:
I – identificação do intimado e nome do órgão ou entidade administrativa;
II – finalidade da intimação;
III – data, hora e local em que deve comparecer;
IV – se o intimado deve comparecer pessoalmente, ou fazer-se representar:
V – informação da continuidade do processo independentemente do seu comparecimento;
VI – indicação dos fatos e fundamentos legais pertinentes.
- 2º A intimação observará a antecedência mínima de 7 (sete) dias corridos quanto à data de comparecimento.
Art. 10. A intimação e informes procedimentais deverão seguir a seguinte ordem:
I – Intimação via endereço eletrônico pelo email cadastrado no SIGA;
II – Intimação via Direção da Unidade Acadêmica, mediante ofício.
- 1º Caso o aluno continue inerte, a intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado.
- 2º No caso de denunciado não localizado ou com domicílio indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio do Diário Oficial da União.
Art. 11. As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.
Art. 12. A Comissão de Heteroidentificação poderá fixar calendário para a prática de atos procedimentais, de forma a dispensar a intimação das partes para a prática desses atos.
Art. 13. O desatendimento da intimação não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia a direito pelo denunciado.
Parágrafo único. No prosseguimento do processo, será garantido direito de ampla defesa ao interessado.
Art. 14. O não comparecimento injustificado do denunciado ensejará a suspensão da matrícula acadêmica até o comparecimento do denunciado.
Art. 15. O procedimento de heteroidentificação submete-se aos seguintes princípios e diretrizes:
I – respeito à dignidade da pessoa humana;
II – observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal;
III – garantia da efetividade da ação afirmativa de reserva de vagas a candidatos por cotas raciais ao acesso ao ensino superior.
Art. 16. O procedimento de heteroidentificação será realizado por, no mínimo, 3 (três) membros integrantes da Comissão de Heteroidentificação.
Parágrafo Único. Em caso de impedimento ou suspeição, nos termos dos Artigos 18 a 21 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, o membro será substituído.
Art. 17. A Comissão de Heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo aluno.
- 1º Serão consideradas as características fenotípicas do aluno ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação.
- 2º Os traços fenotípicos preponderantemente característicos da população negra que são observados serão:
I – Cor da pele;
II – Textura do cabelo;
III – Formato do nariz e boca.
- 3º Cabe, exclusivamente, à Comissão de Heteroidentificação deliberar se o aluno denunciado apresenta ou não o conjunto característico fenotípico necessário à reserva de vaga.
Art. 18. Na hipótese da Comissão de Heteroidentificação confirmar a declaração apresentada, será dada vistas dos autos ao aluno com promoção de arquivamento do feito.
CAPÍTULO IV
Dos Recursos
Art. 19. Finda a etapa de heteroidentificação, ao aluno cuja autodeclaração não for confirmada em procedimento de heteroidentificação, será oportunizada a apresentação de recurso no prazo de 10 (dez) dias corridos para apresentação de razões de fato e de direito, caso discorde do parecer da Comissão de Heteroidentificação, que ensejará em novo procedimento de heteroidentificação.
Paragrafo único – O final da etapa de heteroidenficação se dará com a expedição do relatório final da Comissão de Heteroidenficação, da qual o aluno interessado deverá ser notificado oficialmente conforme estebeclecido no artigo 10 desta resoluão, ocasição na qual se inicia o prazo recursal.
Art. 20. O procedimento de heteroidentificação previsto no Art. 19 será conduzido por uma Comissão Recursal composta por no mínimo 3 (três) integrantes, distintos dos membros da Comissão de Heteroidentificação que anteriormente avaliou a situação fenotípica do recorrente, observadas as disposições contidas nesta Resolução.
Parágrafo único. Caso entenda haver necessidade, o processo poderá ser encaminhado à Procuradoria para esclarecimento de dúvida jurídica formulada.
Art. 21. Expirado o prazo estabelecido no Art. 19 e a não apresentação de recurso, a Comissão de Heteroidentificação expedirá relatório final decidindo não se tratar de pessoa preta ou parda.
Art. 22. No relatório final deverá constar:
I – breve relato da denúncia apresentada;
II – relatório da Comissão de Heteroidentificação;
III – síntese da defesa;
IV – razões de decidir.
Art. 23. Expedido o relatório, o denunciado terá prazo de 7 (sete) dias corridos para manifestação.
Art. 24. Decorrido o prazo, o processo será encaminhado à Pró-Reitoria de Graduação para providências.
CAPÍTULO V
Das Disposições Finais
Art. 25. A qualquer momento anterior a expedição do relatório final, o aluno poderá pedir o cancelamento da matrícula, o que implicará na perda do objeto processo, sendo expressamente vedado, posterior descancelamento de matrícula.
Art. 26. Verificada a inconsistencia entre a autodeclaração e a condição de fato do aluno, sua matricula será cancelada e o autos serão encaminhados ao Ministério Público Federal para eventuais providencias.
Art. 27. Cabe ao CONSUNI a competência para o julgamento dos recursos em face da decisão da Pró-Reitoria de Graduação, que terá efeito meramente devolutivo.
Art. 28. disposto na presente resolução será aplicado aos processos de apuração de fraudes já em curso.
Art. 29. A presente Resolução entra em vigor na data de sua publicação no Boletim da Universidade Federal do Rio de Janeiro.