Parlamentares alertam para manutenção da pressão. Dirigentes sindicais apontam para a rejeição
O relator da PEC 32 /2020 na comissão especial da Câmara dos Deputados, Arthur Maia (DEM-BA), protocolou as 18h30 desta terça-feira, 31, o substitutivo à proposta original do governo Bolsonaro. Antes, em coletiva, acompanhado dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e da comissão especial, Fernando Monteiro (PP-PE), Maia anunciou algumas modificações que não mexem substancialmente com a proposta.
O parecer será lido amanhã, dia 1º de setembro, em reunião extraordinária da comissão especial. A tendência é que haja pedido coletivo de vistas para que os deputados possam analisar o texto. A discussão será iniciada, então, no dia 14 com término previsto no colegiado dia 16 de setembro. Inicialmente, Arthur Lira sinalizou querer votar o texto da PEC em plenário ainda em setembro e já conversou com senadores vislumbrando a aprovação final da proposta em outubro.
O objetivo maior das modificações pelo relator Arthur Maia é tornar palatável a reforma administrativa para a base governista, cujos parlamentares vem se declarando contrários à PEC 32. Segundo o deputado Gervásio Maia (PSB-PB), integrante da comissão especial, os governistas estão nervosos. “Notei o semblante de aflição deles. Ano que vem é ano de eleição e há a pressão e a mobilização que acontecem de forma maciça por todo o Brasil. Eles estão acuados diante desse texto da reforma que é terrível”, observou.
“Temos de manter a pressão, porque a PEC é muito ruim, todos sabem disso. E por mais que ele emende e/ou conserte coisa boa não virá. Por isso temos de estar atentos para manter a pressão pela rejeição da PEC e a apresentação dos destaques e emendas que serão apresentadas nesse período. Estamos imbuídos em manter essa luta e pressionar pela rejeição da PEC 32”, declarou o deputado Rogério Correia (PT-MG), um dos coordenadores da Frente Parlamentar Mista do Serviço Público.
Essência da proposta se mantém
Segundo o especialista em serviço público e assessor da Frente Parlamentar Mista do Serviço Público, Vladimir Nepomuceno, não existe novidades e o anúncio sobre a estabilidade visa a diminuir resistências.
“Não há novidades em relação ao que já sabemos. O discurso de garantia da estabilidade é para tentar diminuir resistências, mas não altera a essência do proposto na PEC para os atuais. Cabe ressaltar que não houve nenhuma palavra sobre a privatização do serviço público, constante do artigo 37-A, que deve estar mantido na íntegra”, avaliou inicialmente Vladimir Nepomuceno, assessor da Frente Parlamentar Mista do Serviço Público.
Centrais querem a rejeição
Todas as centrais sindicais estão unidas contra a PEC 32. No Programa Conversa na Frente, promovido pela Frente Parlamentar Mista do Serviço Público, na manhã desta terça-feira, antes até do anúncio das mudanças pelo relator, os dirigentes rechaçaram qualquer modificação e ratificaram a mobilização pela rejeição da proposta do governo Bolsonaro.
“O DNA dessa PEC não permite nenhum tipo de ajuste para que possa modificar sua essência. Porque a essência dessa PEC é dentro da visão do estado ultraliberal que tem uma perspectiva de estado zero. Podem retirar todos os artigos da PEC 32 e manter só um, o 37. Ali está claro! É entregar tudo para o privado! Não há nenhuma modificação nessa PEC que possa melhorar ou diminuir os danos”, declarou Pedro Armengol, diretor da CUT e da Condsef.
“Nós das centrais sindicais temos que proclamar que esse projeto seja rasgado e jogado na lata do lixo! Para quem não o conhece esse cidadão Arthur Maia liderou os principais pacotes de maldades contra os interesses da classe trabalhadora e o povo brasileiro. Ele foi relator da proposta de terceirização generalizada e irrestrita e relator da reforma da Previdência e segue como todos os outros membros do palácio central obcecados em passar a boiada. Então ainda que haja alguma defecção na base do governo ele tem operado acordos com o Centrão e isso exige que sigamos vigilantes e literalmente mobilizados”, alertou Adilson Araújo, presidente da CTB.
“Não nos interessa nenhuma emenda. Não há emenda que salve essa reforma. Ela tem que ser rejeitada, pois o que vai acontecer se provada vai aumentar e muito o caos no Brasil. É uma reforma que não tem emenda. Tem que ser rechaçada”, defendeu José Gozze, presidente da Pública Central do Servidor.
O que foi anunciado
Principais considerações do relator:
▪️Retirada do texto do regime de contratação por tempo determinado;
▪️Retirada do texto do chamado “vínculo de experiência”;
▪️Reformulação do estágio probatório, passando a acontecer de forma semestral, no mesmo período de 3 anos (ou seja: a partir de 6 avaliações semestrais);
▪️ Manutenção da estabilidade para todos os servidores públicos, entrelaçada à avaliação de desempenho.
▪️Regulamentação do mecanismo dos contratos temporários, a partir de processo seletivo simplificado, igualmente sujeitos à avaliação de desempenho. Vedada a sua utilização nos cargos exclusivos de Estado.
▪️ Avaliação de desempenho por meio da plataforma digital Gov.BR, cujos detalhes serão dados em regulamento futuro.
▪️ Definição de cargos exclusivos de Estado (palavras do relator) no bojo da PEC.
Contra o autoritarismo e os desvarios golpistas de Bolsonaro, presidente nacional da CUT, Sérgio Nobre, reforça convocação para atos de 7 de setembro em todo o Brasil. Confira onde tem atos
Movimentos populares, entre eles a CUT, que há anos realizam o Grito dos Excluídos, derrotaram, em São Paulo, o governador João Doria (PSDB), que tentou proibir a realização de manifestações em defesa da democracia, no dia 7 de setembro na capital paulista. O “Fora, Bolsonaro” e o grito no Dia da Independência ganharam mais força em todo o país com essa vitória e será realizado em centenas de cidades. Confira abaixo mapa e lista de locais onde já tem ato marcado.
A Justiça garantiu aos grupos de oposição ao presidente Jair Bolsonaro (ex-PSL) o direito de realizar manifestação no vale do Anhangabaú, na capital paulista, em 7 de setembro. Doria queria que o ato fosse realizado no dia 12, junto com movimentos de direita como o MBL e o Vem Pra rua, além de partidos políticos, que estão organizando protestos para este dia.
“Foi uma vitória da democracia. O governador não tem o direito de proibir a manifestação. Pelo contrário, o papel do Estado é garantir o direito de manifestação. O cidadão não precisa permitir permissão para ninguém para se reunir de maneira pacífica, para expressar sua visão sobre o país”, afirma o presidente da CUT,
Sérgio Nobre, que classificou a atitude de Doria como uma intervenção autoritária e ilegal.
A alegação do governador de São Paulo, derrotada por uma liminar conquistada na Justiça, foi de que no dia 7 de setembro haverá atos em defesa de Bolsonaro, convocados pelo próprio presidente, e a realização simultânea das pautas opostas coloca em risco a segurança dos manifestantes.
Atos em todo o país
Os atos democráticos do dia 7 de setembro serão realizados em várias cidades do país e vão engrossar o coro do ‘Fora, Bolsonaro’ no dia 7. Ao tentar proibir a mobilização em São Paulo, João Doria também ignorou o caráter nacional da manifestação, realizada desde 1994.
O Grito
O ‘7S’ é a quinta grande manifestação este ano contra o governo de Jair Bolsonaro. Protestos já foram realizados nos dias 29 de maio, 19 de junho, 3 de julho e 18 de agosto, data em que houve paralisação dos servidores públicos contra a reforma Administrativa (PEC 32).
Para o dia 7 de setembro, a convocatória das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo e da Campanha Nacional Fora Bolsonaro reforça que a democracia e a soberania do Brasil estão sob ataque. E que Bolsonaro e sua base ameaçam o país com um golpe, citando ameaças diárias do presidente contra as instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), atacando o as urnas eletrônicas.
Paralelamente, continuam as consequências da falta de enfrentamento à pandemia, bem como a política econômica desastrosa que vem aumentando o desemprego e deixando milhões de pessoas na miséria e na fome.
O Brasil não pode esperar! Precisamos dar um basta nessa situação! Por isso convidamos todo o povo brasileiro para ir às ruas conosco no 7 de setembro! Vamos juntos com o 27º Grito dos Excluídos à luta por participação popular, saúde, comida, moradia, trabalho, renda e Fora Bolsonaro Já!
Sérgio Nobre destaca ainda que o dia 7 é um dia crucial “dado o comportamento claramente golpista e de ataque às instituições e à democracia”.
“E a gente sabe o que significa um golpe. Já vivemos uma ditadura no país e não vamos permitir novamente”, completa o presidente da CUT.
O dia 7 de setembro será um contraponto ao autoritarismo de Bolsonaro. Os atos têm de ser grandes não só nas capitais, mas também nas cidades do interior
– Sérgio Nobre
Por isso, Sérgio Nobre convoca todas as estaduais da CUT e sindicatos filiados a mobilizarem suas bases tanto para ocupar as ruas das cidades como organizar caravanas para as capitais, em especial para São Paulo, onde o ato, este ano, será realizado no Vale do Anhangabaú, região central da cidade.
Já tem atos marcados
Veja no mapa onde serão realizados os atos do Grito dos Excluídos e “Fora, Bolsoanro”. Confira abaixo também a relação de cidades em todo o Brasil.
RJ – Rio de Janeiro – Uruguaiana/Presidente Vargas | 9h
Região Norte
AM – Manaus – Bicicletada do Grito, Concentração no T1 | 15h
AM – Manaus – Ato Central Av. Lourenço da Silva Braga Centro | 16h
PA – Altamira – Em frente à Equatorial Energia | 8h
PA – Belém – Praça do Mercado de São Brás | 8h
RO – Rondônia – 15h (Aguardando Infos)
Região Nordeste
BA – Ilhéus – Praça do Teotônio Vilela | 9h
BA – Paulo Afonso – Praça da Tribuna | 9h
BA – Salvador – Campo Grande I 10h
CE – Guaraciaba do Norte – Praça do Guaracy | 8h (Café com Democracia)
CE – Maranguape – R. Maranguape esquina com João Chimelo, Flamingo | 9h
CE – Limoeiro do Norte – Rodoviária de Limoeiro do Norte | 7h
CE – Tianguá – Bairro Terra Prometida | 8h
MA – Açailândia – Praça dos Pioneiros | 19h
PB – João Pessoa – Carreata Praça das Muriçocas – Miramar até Sesc Praia Cabo Branco | 9h
PE – Afogados da Ingazeira – Ato Unificado Sertão do Pajeú – Av. Rio Branco (Ato em 04/09)
PE – Recife – Praça do Derby até Pátio do Carmo | 10h
PI – Teresina – Em frente à Assembleia Legislativa | 8h
RN – Natal – Caminhada Praça das Flores | 9h
RN – Mossoró – Concentração na Cobal | 7h
SE – Aracaju – Paróquia São José e Santa Tereza de Calcutá, Conjunto Marivan | 8h
O enorme contingente de trabalhadores ocupados sem direitos é formado pelos sem carteira assinada, por contra própria, com e sem CNPJ, e até empregadores Meis, que ganham menos que um salário mínimo por mês
Com recorde no número de trabalhadores sem direitos, os chamados por conta própria, e de subocupados por insuficiência de horas trabalhadas, além de aumento de informais, país registra leve queda no número de desempregados em junho.
A taxa de desemprego do trimestre móvel de abril a junho de 2021 foi de 14,1%, atingindo 14,4 milhões de trabalhadores e trabalhadoras, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pand-Contínua/Mensal), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada nesta terça-feira (31).
A taxa recuou 0,6 ponto percentual em relação ao trimestre de janeiro a março de 2021 (14,7%), ajudada por algumas contratações, mas também por mais um recorde da série histórica no número de trabalhadores por conta própria (24,8 milhões de pessoas). A alta foi de 4,2% (mais 1 milhão de pessoas) ante o trimestre anterior. Na compração anual, a alta foi de 14,7% (3,2 milhões de pessoas).
A taxa de informalidade também subiu para 40,6% da população ocupada do país e atinge 35,6 milhões de trabalhadores. No trimestre anterior, a taxa havia sido 39,6% e, no mesmo trimestre de 2020, 36,9%.
Outro recorde da série histórica foi o da população subocupada por insuficiência de horas trabalhadas (7,5 milhões de pessoas) – com altas de 7,3% ante o trimestre anterior (511 mil pessoas a mais) e de 34,4% (1,9 milhão de pessoas a mais) frente ao mesmo trimestre de 2020.
Se somarmos todos os trabalhadores ocupados em situação precária, o país tem 43,5 milhões de pessoas sem direitos básicos como férias e 13º salário, diz a técnica da subseção do Dieese da CUT Nacional, Adriana Marcolino.
São os contratados sem carteira assinada, os por contra própria – com e sem CNPJ – os empregadores Microempreendedores Individuais (MEIs), que chegam a ganhar menos que um salário mínimo por mês, além dos trabalhadores que auxiliam nos negócios da família, explica.
“Não dá para comemorar essa queda no desemprego, pois ainda temos 14,4 milhões de trabalhadores desempregados e 43,5 milhões sem direitos ou subutilizados”, diz Adriana.
Segundo ela, só daria para comemorar se o país estivesse numa trajetória consistente de desaceleração do desemprego.
“A taxa pode cair um pouco, mas não vai ficar num patamar suficiente para a gente sequer voltar as taxas de antes da pandemia”, acrescenta.
De acordo com a técnica do Dieese, para o desemprego ter queda consistente o Brasil precisaria voltar a crescer com vigor, o que não está no horizonte até mesmo em função do caos em que se transformou a gestão do governo federal em todas as áreas de atuação.
“O Produto Interno Bruto [PIB] caiu 4,5% no ano passado e teria de crescer, no mínimo esse percentual este ano. O governo está apostando em um crescimento de 5,3% este ano, enquanto o FMI [Fundo Monetário Internacional] diz que vai ser 3,7%, mas a economia não tem vigor que dê conta disso”, pontua.
“E não adianta o governo querer resolver o problema do desemprego tirando direitos como no caso de medida provisória 1045 porque as pessoas não vão ter renda suficiente, o consumo vai cair e a gente vai continuar nesse cenário de crise”, conclui Adriana Marcolino.
Outros números
. A taxa composta de subutilização, que inclui a de desocupação, a de subocupação por insuficiência de horas e a da força de trabalho potencial, pessoas que não estão em busca de emprego, mas que estariam disponíveis para trabalhar, foi de 28,6%, menos 1,1 p.p. em relação ao trimestre anterior (29,7%); e estável na comparação com o mesmo trimestre de 2020 (29,1%).
. A população subutilizada foi de 32,2 milhões de pessoas, diminuiu 3,0% (menos 993 mil pessoas) frente ao trimestre anterior (33,2 milhões); e f icou estável na comparação anual (31,9 milhões).
. A população desalentada (5,6 milhões de pessoas) foi de 5,2%, caiu ante o trimestre anterior (menos 388 mil pessoas) e ficou estável no ano.
. O número de trabalhadores com carteira de trabalho assinada no setor privado (exclusive trabalhadores domésticos) foi de 30,2 milhões de pessoas, subindo 2,1% (618 mil pessoas) frente ao trimestre anterior e ficando estável ante o mesmo trimestre de 2020.
. O número dos sem carteira assinada no setor privado (10,0 milhões de pessoas) subiu mais, 3,4% (332 mil pessoas) frente ao trimestre anterior e 16,0% (1,4 milhão de pessoas) no ano.
Impeachment é um episódio vergonhoso da história no qual o oportunismo derrotou as instituições. Cenário atual, resultante do processo aprofundado em 2016, mostra os riscos de se brincar com a democracia
“Era claro para mim que o Brasil continha contradições, desequilíbrios sociais e raciais profundos. Mas mesmo assim me parecia haver um espírito dominante que impedia de se chegar à realidade com que me deparei. Era como se vocês vivessem um tipo de guerra, ainda que não declarada.”
A declaração acima é do escritor moçambicano Mia Couto que, em entrevista ao jornal O Globo, compara sua última visita ao Brasil, em 2019, com as ocasiões anteriores em que esteve aqui. Ele conta ainda ter descoberto “que existem outros brasileiros, além daqueles com quem eu convivia. E que eles também fazem parte do que o Brasil é. Nenhum de nós ignorava a existência de um setor da sociedade brasileira cultivada em ódio e preconceitos, norteada pela lógica da exclusão, mas o que não se esperava é que este segmento mostrasse de forma tão explícita sua face.”
Não foi de um dia para o outro. Este Brasil das sombras existia, mas esbarrava em um superego nacional que forjava a ideia de um país mais inclusivo e menos desigual. Motivos para a elaboração da imagem não faltavam: mesmo com uma história de séculos de massacres, injustiça social e discriminações, avanços se notavam nas áreas social e econômica, também no acesso a direitos como os relacionados à educação e saúde. Ainda pouco para o passivo que o país tem, mas demais para quem se recusa a aceitar a implementação de patamares civilizatórios mínimos.
Este outro Brasil estava à espreita. E encontrou sua imagem mais bem acabada no curto e grotesco discurso do então deputado federal Jair Bolsonaro na votação que autorizou a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 17 de abril de 2016. “Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”, disse o parlamentar.
A atitude era emblemática por vários motivos. Um deles era o fato de contrastar com parte dos integrantes das Forças Armadas que negavam a existência da prática de tortura no período ou apelavam para “razões de segurança” ou “casos isolados” para explicar a conduta dos agentes à época. O pretenso negacionismo caía por terra com Bolsonaro. A tortura era reconhecida, aplaudida e elogiada. Em plena “Casa do Povo”. O Rubicão citado recentemente pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski em artigo recente havia sido ultrapassado às vistas de todos.
Contudo, talvez o impacto maior do discurso do parlamentar tenha sido a reação quase nula diante do ocorrido. Exceção feita a poucas entidades, como a seção do Rio de Janeiro da OAB e alguns políticos, tampouco outros atores importantes do cenário nacional se pronunciaram. Boa parte dos silentes embarcaria, dois anos depois, na candidatura presidencial do atual ocupante do Planalto, ignorando a atitude de alguém que, inúmeras vezes, já havia atentado contra a democracia.
As instituições não reagiram, a despeito de dizerem que “funcionavam”. E a conclusão do impeachment evidenciou a falência do frágil arranjo da democracia formal.
O caminho da ruptura
A jornada que desencadeou no impeachment começou ainda na campanha presidencial de 2014. Antes de não aceitar a derrota para Dilma Rousseff, o candidato do PSDB, Aécio Neves, adotou uma retórica antipetista, que se tornava antiesquerda em sua forma prática. E que não devia nada ao udenismo que ajudou a criar o ambiente político para o golpe de 1964. Embora muito se fale da agressividade da campanha elaborada pelo marqueteiro João Santana no primeiro turno daquele pleito contra a candidata do PSB, Marina Silva, em geral se ignora o peso da propaganda subterrânea do tucano contra ela.
Aécio só ultrapassou sua rival garantindo um lugar no segundo turno na reta final da primeira volta. E isso graças ao apoio de grupos poderosos e anabolizados financeiramente no Facebook, cruciais em 2014. Tais páginas cresceram em adeptos em especial no ano de 2013 e seriam depois responsáveis pelo chamamento de pessoas às manifestações contra Dilma no final de 2014 e em 2015. Com uma retórica de extrema-direita, atacaram Marina taxando-a como “petista”, “comunista”, entre outras expressões que a associavam de forma pejorativa a um exacerbado e inexistente “esquerdismo”, repetindo a dose no segundo turno contra Dilma.
Monitoramentos realizados nas redes sociais mostravam um discurso radical, alimentado já àquela altura por diversas fake news, e que ajudariam o tucano a vestir um figurino deslocado cada vez mais para a borda do espectro político. Diferentemente do que ocorre com candidatos que encaram um segundo turno e adotam postura mais moderada para ampliar sua base eleitoral, Aécio adernou ainda mais para a direita, mantendo a postura mesmo após as eleições.
Logo, os mesmos que o ajudaram a quase chegar ao Planalto o trocariam por alguém mais “genuíno” para seus anseios. Com a economia dando sinais de estagnação, um cenário político no qual o Legislativo passou a chantagear e acuar o Executivo por meio do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e um sistema de Justiça que começava a se dobrar diante dos abusos cometidos pela operação Lava Jato em Curitiba, a tempestade se formava no horizonte.
Não se pode esquecer também o papel fundamental de quem, décadas antes, já havia apoiado e colaborado para a ruptura que levou à ditadura civil-militar. Parte da ultra-concentrada mídia tradicional brasileira estimulou e praticamente convocou manifestações contra a presidenta, fomentando um clima de mobilização quase permanente.
Tais atores concorreram para o que os professores de Ciência Política da UFRJ Jorge Chaloub, Josué Medeiros e Pedro Luiz Lima denominaram como os eixos nos quais o processo que resultou no impedimento de Dilma se fundou. “O golpe de 2016 contou com um processo de apoio social, a partir de três eixos (combate à esquerda, anti-corrupção e pauta econômica) que foi fundamental para dar sustentação à articulação institucional operada por figuras como Michel Temer, Eduardo Cunha e Aécio Neves. A direita ocupou as ruas massivamente, algo que não ocorria desde os anos 1960, com as mobilizações do movimento Tradição, Família e Propriedade, favorável ao golpe militar naquela época contra os comunistas”, apontam, em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil.
Foi golpe. E muito
“É o segundo golpe de estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar, apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado hoje por meio de uma farsa jurídica, me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo.”
Há cinco anos, Dilma Rousseff descrevia assim seu impeachment, que o Senado havia ratificado no início da tarde daquele 31 de agosto. Já se tornara lugar comum então a justificativa legal para o impedimento de uma presidenta, sem evidência alguma do cometimento de qualquer crime de responsabilidade dentro das hipóteses elencadas na Constituição Federal, baseando-se na afirmação de que o impeachment se basearia em um processo político e jurídico. O que é verdade, mas o truque semântico se vale de utilizar o termo “político” como preponderante, praticamente a anular o “jurídico”. E aí se faz a farsa.
À época presidente da Associação de Juízes para a Democracia, André Augusto Salvador Bezerra era taxativo em artigo publicado a dois dias do julgamento do Senado. “Parece que o delírio hermenêutico foi longe demais, alcançando agora o requisito mínimo de uma democracia representativa, o voto popular. Não há dúvida de que, no futuro, os manuais de Direito chamarão toda essa manobra de troca de presidentes da república de golpe de Estado.”
Ele destacava a exigência do crime de responsabilidade para a instauração do processo de impedimento. “Ora, desde quando se sabe que manobra orçamentária praticada por chefe de Executivo configura crime? Não se sabe, até porque se trata de prática corriqueira entre chefes de Executivo. Nunca foi crime. Passou a ser crime para uma única pessoa, valendo unicamente para ela. Tal como ocorria na inquisição pré-iluminista”, pondera.
Teses e disparates
No âmbito fiscal, duas acusações contra a presidenta. A primeira dizia que, com o atraso do repasse de recursos a bancos públicos responsáveis pelo pagamento de obrigações públicas, a União teria, na verdade, contraído crédito junto a tais instituições, argumento desmontado pelo professor universitário e doutor em ciência Política Francisco Tavares, em artigo no site Jacobin. “Ao se entender que o simples atraso quanto ao cumprimento de obrigação legal equivaleria a uma operação de crédito, procedeu-se como se uma pessoa que atrasa sua conta de água ou luz estaria tomando empréstimo da fornecedora do serviço. Em síntese, um disparate jurídico.”
A outra acusação se referia a créditos suplementares autorizados por uma lei editada posteriormente à sua expedição, embora no mesmo exercício financeiro. Diz Francisco Tavares: “O que acontece é que, novamente, qualquer vestibulando para a carreira jurídica sabe que o direito financeiro é regido pelo princípio da anualidade. Assim, a exorbitância ou não entre créditos suplementares e as autorizações legais deve ser considerada com base em valores e na legislação vigentes ao final do exercício. Este, aliás, sempre fora o entendimento dos órgãos de controle. Em uma ação de exceção, contudo, aplicou-se uma nova e antijurídica tese para se destituir um mandato conferido pelo voto popular”.
Se na mídia tradicional brasileira não se ouviam vozes contrárias à tese da legalidade do processo de impeachment, no exterior a história era outra. O portal alemão Spiegel Online chamava o processo contra Dilma de “farsa” e mesmo ressaltando que “a palavra golpe tem um grande peso na América Latina”, por conta da associação do termo com o uso da força militar, histórico no continente, questionava: “Mas como se deve chamar o processo em que uma chefe de Estado democraticamente eleita é afastada de seu cargo com uma justificativa legal duvidosa?”. Ainda segundo o veículo alemão, “não é preciso ser um apoiador de Dilma, de Lula ou do PT para constatar: essa mulher foi vítima de uma injustiça histórica”.
Usina de crises
Uma vez consumado o impeachment, a inexistência de fundamentação jurídica foi reconhecida em diversas ocasiões. A mais simbólica ocorreu quando o conspirador palaciano Michel Temer, ao tentar se desvincular das articulações políticas que derrubaram Dilma, cometeu um “sincericídio” em entrevista ao Roda Viva, em setembro de 2019, dizendo: “Eu jamais apoiei ou fiz empenho pelo golpe”. O termo tão evitado agora era explicitamente citado por um de seus artífices.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso também analisou o impeachment em programa do grupo Prerrogativas. “O hiper-presidencialismo latino-americano é uma usina de crises e, portanto, o impeachment passa a ser esse produto de prateleira que se usa na Bolívia, no Paraguai, no Brasil, como aconteceu com a presidente Dilma. Evidentemente ela não caiu por corrupção, até porque, considerando o que veio depois… Ela caiu por falta de sustentação política, não havia um mecanismo institucional do presidencialismo para mudança da condução política quando você tem perda de sustentação.”
O grande problema desta ponderação é que não se pode aceitar como natural esse tipo de deturpação. O professor da USP Virgílio Afonso da Silva, em seu livro Direito Constitucional Brasileiro, aponta que “a caracterização do processo de perda do cargo presidencial por crime de responsabilidade como político não implica tratá-lo como se fosse um voto de desconfiança em sistemas parlamentaristas”. Isto porque, em regimes presidencialistas como o brasileiro, o impeachment representa a punição por um crime e tem caráter estritamente pessoal, ou seja, diz respeito a quem ocupa o cargo de presidente e não a um governo.
Golpe como crime continuado
Assim como o golpe em si não se iniciou em 31 de agosto, ele também não terminou ali. Os eixos sobre os quais ele se ergueu continuam atuando, tendo levado ao poder Jair Bolsonaro. Mais uma vez temos de recorrer a um trecho profético do discurso de Dilma naquela tarde. “O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência.”
De lá pra cá, vimos manifestações e iniciativas não só no campo normativo como também de forma pública por parte de atores políticos e de personalidades que perderam os freios ao destilar seus preconceitos e sua violência. A naturalização do discurso de ódio do presidente e da retórica elitista e tacanha de seu ministro Paulo Guedes faz com que isso seja encarado como parte do jogo. E não é. Ou não deveria ser.
A aplicação de um impedimento a uma presidenta sem crime de responsabilidade acabou desmoralizando um instrumento constitucional responsável por proteger o próprio sistema democrático. Assim, o impeachment, necessário em uma situação concreta com a ocorrência de crime de responsabilidade por parte de um presidente da República, como se dá no cenário atual, dorme na gaveta do presidente da Câmara. Mesmo que hoje, diferentemente de 2016, sobrem razões e fundamentações jurídicas.
Até hoje pagamos, de diversas formas, o preço pela ruptura democrática. O reconhecimento do golpe perpetrado contra Dilma há cinco anos é um passo fundamental para a reconciliação do Brasil com sua própria história. E também para que seja retomado o processo inconcluso da democracia no país.
O Sintufrj encaminhou à PR4 lista dos conveniados de plano de saúde vinculados a nossa Entidade para efeito de comprovação atendendo a exigência do governo federal que deu prazo até 31/08 para o procedimento. Abaixo, o ofício e listagem para consulta.