Alocados pelo governo de Jair Bolsonaro em cargos de confiança na Casa Civil da Presidência da República, dois funcionários concursados do Poder Executivo Federal receberam, por meio de uma empresa criada por eles, o valor de R$ 17,2 mil do Ministério da Infraestrutura para realizar uma formação de 37 servidores da pasta de forma virtual. A informação foi obtida pelo Brasil de Fato no Portal da Transparência e confirmada pelo governo federal. O valor é quase o máximo para que o Executivo possa contratar uma empresa sem licitação ou concorrência pública.
Os funcionários federais em questão são Orlando Oliveira dos Santos, diretor de Gestão da Informação da Presidência da República; e David Antonio Lustosa Oliveira, gerente de Informações Estratégicas. Os dois abriram, juntos, em setembro de 2020, uma empresa chamada Govintelligence para prestar consultorias para governos na área de inteligência de dados. Em novembro de 2021, pouco mais de um ano depois da fundação da empresa, a Govintelligence recebeu o valor do Ministério da Infraestrutura.
Detalhamento do pagamento disponível no Portal da Transparência (consulta feita em 31 de janeiro de 2022) / Reprodução/Portal da Transparência
No início da gestão do presidente Jair Bolsonaro, os dois servidores públicos foram alocados em cargos de confiança na Casa Civil da Presidência da República, então sob o comando de Onyx Lorenzoni (atualmente, ministro do Trabalho e da Previdência) e mantidos sob a chefia dos generais Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto e do atual ministro, o senador licenciado Ciro Nogueira (PP).
O Ministério da Infraestrutura, contratante da empresa, é comandado por Tarcísio Gomes de Freitas, um dos chefes da Esplanada mais próximos a Jair Bolsonaro. Pré-candidato ao governo de São Paulo, ele terá o apoio do presidente na disputa das eleições.
O que diz o governo
Procurada, a Presidência da República afirmou que “não era de conhecimento da Casa Civil a participação dos referidos servidores na empresa citada, nem a prestação de serviços ao Ministério da Infraestrutura”. O Planalto disse ainda que será “enviada consulta à Comissão de Ética da Presidência da República sobre a existência de conflito de interesses na situação relatada”.
Questionado pela reportagem, o Ministério da Infraestrutura adotou outra postura. A pasta afirmou “que a contratação foi realizada respeitando todos os parâmetros legais, que prevêem, entre outras iniciativas, a verificação das certidões da empresa e a pesquisa de mercado”. O ministério confirmou que o curso foi ministrado por David Lustosa, mas negou a existência de um suposto conflito de interesses na contratação de um servidor federal.
“Para oferecer a qualificação, o MInfra realizou pesquisa de mercado com instituições e instrutores. A escolha da Govintelligence LTDA se deu em virtude do melhor custo-benefício, considerando carga horária, valor da hora e valor total do curso”, disse a pasta, que negou o envio de fotografias da formação, solicitadas pelo Brasil de Fato.
“A capacitação em Business Intelligence, com foco na utilização da ferramenta Microsoft Power BI – solução institucional contratada pelo MInfra como parte do pacote Office 365, estava prevista para 2021 no Planejamento de Desenvolvimento de Pessoas do ministério e no Programa de Transformação Digital Minfra 2021″, afirma a nota.
O que diz a GovIntelligence
Funcionários públicos federais são proibidos por lei de participar como sócios-administradores ou gestores de uma empresa. No papel, os dois constam apenas como “sócios” da GovIntelligence. A sócia-administradora é Maynnã Barros do Amaral Lustosa, esposa de David.
Nas redes sociais, contudo, a suposta gestora da empresa não cita experiência na área de dados ou da gestão pública. Maynnã Barros do Amaral Lustosa se identifica no Instagram como a “Blogueirinha de Deus” e relata uma rotina voltada à religiosidade, além de gravar vídeos para o YouTube sobre maternidade.
A reportagem tentou contato telefônico com a Govintelligence, mas o número fornecido no site não existe. Em resposta a e-mail enviado na manhã de segunda-feira (31), a empresa disse que não poderia fornecer um outro telefone, pois a sua sócio-administradora, Maynnã Barros do Amaral Lustosa, estaria “com sintomas gripais” e que teria “piorado desde ontem”. Em seguida, as perguntas foram enviadas por escrito.
A mensagem de resposta enviada pela empresa na manhã desta terça-feira (1) afirma que Maynnã tem “experiência de 8 anos como professora e coordenadora pedagógica atuando em escolas públicas e privadas”, com licenciatura em Ciências Naturais e pós-graduação em andamento em Marketing Digital. Questionada sobre uma possível irregularidade, a Govintelligence disse que “não identificou existência de conflito de interesses”.
Conflito de interesses?
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato apontaram que o Regime Jurídico Único, legislação que regula as condições de trabalho dos servidores públicos federais, determina a proibição de “exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho” e da “acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas”.
A Lei de Confilto de Interesses proíbe os servidores de atuar, ainda que informalmente, “como procurador, consultor, assessor ou intermediário de interesses privados nos órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União” e de “praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes ou afins”.
Os advogados ligados à área do Direito Administrativo consultados pela reportagem, contudo, afirmaram que as normas não são claras sobre a prestação de serviços de empresa de servidores ao próprio governo. Mesmo assim, foram unânimes em apontar que a contratação pode representar um problema do ponto de vista ético.
O mestre em combate à corrupção e pesquisador do Instituto Mercado Popular, Carlos Henrique Barbosa, disse ao Brasil de Fato que é “preciso deixar claro que nem tudo que é legal é íntegro, mas tudo que é íntegro tende a ser legal. Aqui, é um caso típico disso. Mesmo sem se enquadrar legalmente como conflito de interesses, é evidente que a situação merece cuidado”.
Quem são os servidores?
Identificação dos servidores, disponível no site da Casa Civil da Presidência da República / Reprodução/GOV.BR
Os servidores
Orlando Oliveira dos Santos é servidor público federal concursado. Ingressou no Executivo em 2014 como analista do Ministério da Economia. No primeiro mês do atual governo, em janeiro de 2019, foi alocado no Palácio do Planalto e assumiu a Diretoria de Gestão da Informação.
David Antonio Lustosa Oliveira, servidor do Ministério da Educação desde 2008, também foi alocado na Presidência no início da gestão, ocupando cargo de coordenador-geral de Informações Estratégicas e de substituto de Santos como diretor de Gestão da Informação. Os dois servidores têm salário mensal superior a R$ 18.000.
“Gestão inteligente”
O site da Govintelligence não cita quem são os profissionais responsáveis pela operação. O slogan da consultoria é “inteligência analítica para governos”. “Conhecemos a fundo a realidade da gestão pública, sua natureza, desafios e limitações. Nossas ofertas são focadas nesta realidade, de forma que você seja capaz de implementar os projetos em sua área de forma ágil”, diz a descrição.
“Podemos te ajudar a promover uma gestão governamental inteligente, pelo uso de dados e tecnologias para melhoria dos serviços prestados aos cidadãos”, afirma o site da empresa.
A Govintelligence também não divulga os clientes que já atendeu. Os perfis da consultoria no Instagram e no LinkedIn não possuem publicações. Um dos poucos seguidores da conta no Instagram é um usuário com o mesmo nome de Orlando Oliveira dos Santos. O perfil não tem publicações. Entre as 16 pessoas que acompanha, estão Bolsonaro, o ministro Onyx Lorenzoni e Ernesto Araújo. O perfil de David Lustosa no Facebook mostra curtidas nas páginas do Movimento Brasil Livre (MBL) e de apoio à comentarista Rachel Scherazade.
Íntegra da nota da Casa Civil da Presidência
Não era de conhecimento da Casa Civil a participação dos referidos servidores na empresa citada, nem a prestação de serviços ao Ministério da Infraestrutura. Informamos que será enviada consulta à Comissão de Ética da Presidência da República sobre a existência de conflito de interesses na situação relatada.
Íntegra da nota do Ministério da Infraestrutura
A contratação foi realizada respeitando todos os parâmetros legais, que prevêem, entre outras iniciativas, a verificação das certidões da empresa e a pesquisa de mercado. A Lei 8.112/1990 permite que o servidor público participe como acionista em empresa privada e veda a contratação pelo órgão que ele é nomeado originalmente.
Informamos que o curso foi ministrado por David Antonio Lustosa, com os serviços prestados e atestados pela área de capacitação da Coordenação Geral de Pessoas do Ministério da Infraestrutura, que acompanhou a execução e a certificação dos alunos. O curso ocorreu de forma virtual entre 27 de setembro e 3 de novembro de 2021.
A capacitação em Business Intelligence, com foco na utilização da ferramenta “Microsoft Power BI” – solução institucional contratada pelo MInfra como parte do pacote Office 365, estava prevista para 2021 no Planejamento de Desenvolvimento de Pessoas do ministério e no Programa de Transformação Digital Minfra 2021.
Para oferecer a qualificação, o MInfra realizou pesquisa de mercado com instituições e instrutores. A escolha da Govintelligence LTDA se deu em virtude do melhor custo-benefício, considerando carga horária, valor da hora e valor total do curso.
Íntegra das respostas Maynnã Barros do Amaral Lustosa, sócia-administradora da Govintelligence
1) Qual a formação acadêmica e a experiência profissional da senhora?
Pós-Graduanda em Marketing Digital, Licenciada em Ciências Naturais, Experiência de 8 anos como professora e coordenadora pedagógica atuando em escolas públicas e privadas. Atuei em projetos de pesquisa na áreas educacional.
2) A senhora coordenou uma formação direcionada a 37 servidores do Ministério da Infraestrutura em novembro do ano passado?
Sim.
3) Quais foram os demais membros da equipe da empresa no desenvolvimento da referida formação?
David Antonio Lustosa de Oliveira – Instrutor.
4) Quem/quantos são os profissionais vinculados diretamente à empresa formalmente?
Somos uma startup e esta foi por enquanto a nossa primeira e única contratação, então ainda não houve a necessidades de contratações de equipes adicionais.
5) A senhora é casada com o servidor público federal David Antônio Lustosa?
Sim.
6) A senhora, como sócia-administradora, não calculou o possível conflito de interesses existente na prestação de serviço ao mesmo ente público que os servidores Sr. David Lustosa e Sr. Orlando dos Santos, sócios da empresa, são vinculados?
Não identificamos existência de conflito de interesses.
Edição: Rodrigo Durão Coelho