Legado do pensador pernambucano, que completaria cem anos no próximo domingo (19), não se limita à área da educação
Daniel Giovanaz e Ana Paula Evangelista/16 de Setembro de 2021
Educação popular se opõe ao modelo autoritário ou “bancário”, que legitima o status quo e que supõe uma hierarquia de saberes – Instituto Paulo Freire
A educação popular parte dos conhecimentos prévios do povo para construir novos saberes
Um dos mais importantes pensadores brasileiros, Paulo Freire (1921-1987) completaria cem anos no próximo domingo (19). O legado do autor de Pedagogia do Oprimido, entre outras obras-primas, não se limita à sala de aula.
Em meio às comemorações pelo centenário, o Repórter SUS conversou com Vera Joana Bornstein, professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
No relato dela, ficam evidentes as contribuições da obra de Freire para o direito à saúde, inspirando inclusive a luta pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Vera Joana conta que entrou em contato com o pensamento freiriano nos anos 1970, por meio do Movimento de Educação da Base, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB). A ideia do movimento era atender comunidades rurais por meio de programas radiofônicos.
“Fiquei maravilhada com a perspectiva educativa crítica, que procurava, por meio da problematização da realidade, aprofundar o entendimento das causas dos problemas vivenciados pela população, abrir espaço para a indignação diante das desigualdades, buscar soluções coletivas e transformar a realidade”, relata.
A obra de Freire ressaltava que os problemas estruturais da sociedade não seriam solucionados individualmente. Nas palavras dele, “ninguém liberta ninguém, e ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão.”
A educação popular se opõe ao modelo autoritário ou “bancário”, que legitima o status quo e que supõe uma hierarquia de saberes, onde um transmite e outro recebe. A perspectiva defendida por Freire, pelo contrário, está relacionada à justiça social, à diversidade, à tolerância e ao afeto.
“Mesmo que Paulo Freire tenha aplicado inicialmente seus conhecimentos ao campo da educação, percebi ainda nos anos 1970 que muitos trabalhadores da saúde já tinham conhecimento da proposta de educação popular. Sobretudo aqueles que desenvolviam projetos de saúde comunitária”, lembra a professora da EPSJV.
Esses trabalhadores e lideranças populares começaram a questionar o modelo biomédico centrado na doença e no hospital e fortaleceram o que, na época, se chamava saúde comunitária.
“Foram várias experiências de interiorização e atuação em periferias das cidades, muitas vezes voluntárias. Elas se aproximaram da educação popular e fortaleceram o direito à
saúde e, posteriormente, a luta pela criação do SUS”, conta Vera Joana Bornstein.
Na saúde, a educação popular se contrapõe ao autoritarismo presente na cultura sanitária e busca a valorização do saber popular e a compreensão de experiências concretas da população, a partir de suas vivências.
“Essa postura, na atenção primária, se reflete na atuação desses trabalhadores, que não se limitam a questões específicas da saúde e buscam atuar sobre as causas dos problemas de saúde, que muitas vezes se encontram em outros campos”, diz a pesquisadora.
Vera Joana diz que o pensamento de Freire inspira a construção da autonomia e da participação popular e a valorização de práticas tradicionais de cuidado em saúde, como o conhecimento de plantas medicinais.
“A educação popular parte dos conhecimentos prévios do povo, de suas trajetórias e realidades, para construir novos saberes. É uma perspectiva libertadora”, finaliza.
Edição: Anelize Moreira