Pilotis do prédio da Reitoria da UFRJ onde também funciona a Escola de Belas Artes. Paisagem de silêncio com a comunidade universitária em quarentena.

Enquanto governo estadual e justiça se envolvem numa queda de braço sobre a flexibilização das regras de distanciamento social, dirigentes de onze instituições federais e estaduais de educação reafirmam a defesa da manutenção do isolamento para conter a propagação do coronavírus.

Em manifesto, eles sustentam que “o retorno das atividades presenciais” nas instituições quando for “lastreado por dados científicos que balizarão a nossa decisão sobre quando e como poderá ocorrer”.

O documento é assinado por reitores, entre os quais os da UFRJ (Denise Pires), UFF (Antônio Cláudio da Nóbrega) e Uerj (Ricardo Lodi Ribeiro).
O texto destaca a importância do ensino à distância, mas afirma que essa modalidade de ensino é inviável para a substituição “da oferta plena dos atuais cursos presenciais”. Em outro trecho, o documento alerta a necessidade de recursos governamentais para o retorno quando for “restabelecida a completa normalidade sanitária”.

O manifesto enfatiza, neste sentido, “que será necessária a adoção de uma série de medidas relativas às estruturas físicas, ao treinamento de pessoal e à inclusão digital” de trabalhadores, com vistas à minimização dos riscos de contágio, o que “exigirá investimentos”.

O documento termina invocando a defesa da democracia: “Por fim, reafirmamos nosso compromisso com a democracia e suas instituições, a cultura, a ciência, a educação, a saúde, a paz e a vida”.

Confirma a íntegra do documento aqui.

 

Instituto Tricontinental reuniu relatos de profissionais e analisou situação de Brasil, Argentina, Africa do Sul e Índia

Matéria retirada do site do Brasil de Fato

A saúde é uma escolha política. A máxima apresentada pelo Dossiê nº 29 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, lançado nesta terça-feira (9), tem como base o cenário de crise aprofundado pela pandemia do novo coronavírus em quatro países que vivem os efeitos de governos neoliberais nos últimos anos: Brasil, Argentina, África do Sul e Índia.

O estudo retrata como durante o combate à covid-19, os trabalhadores da saúde são considerados essenciais e muito tem se falado sobre os direitos que não lhe são garantidos. No entanto, a análise apresentada sustenta que o descaso que se explicita nesse momento resulta de um processo de desmonte que, a exemplo de crises passadas e de políticas que privilegiam o sistema privado ao público, se aprofundará ainda mais.

Neste sentido, o dossiê defende o “não retorno” à normalidade vigente do modelo capitalista e sim o investimento contínuo e prioritário na saúde pública, citando, entre outras referências, uma declaração de Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS).

“O mundo opera em um ciclo de pânico e negligência. Colocamos dinheiro em um surto e, quando acaba, o esquecemos e não fazemos nada para impedir o próximo. O mundo gasta bilhões de dólares se preparando para um ataque terrorista, mas relativamente pouco se preparando para o ataque de um vírus, o que poderia ser muito mais mortal e muito mais prejudicial economicamente, politicamente e socialmente”, disse o porta-voz, em 15 de fevereiro deste ano, no início da pandemia.

 

O mundo opera em um ciclo de pânico e negligência. Colocamos dinheiro em um surto e, quando acaba, o esquecemos e não fazemos nada para impedir o próximo.

 

Em entrevista ao Brasil de Fato, Nathalia Santos, médica da família e comunidade, endossa o argumento. Para ela, o contexto atual demonstra que saúde “não é só uma questão de assistência médica”.

“A saúde dos povos se referencia em suas condições de moradia, de trabalho, de acesso à renda, de acesso a uma alimentação de qualidade, ao saneamento básico. Isso vai definir o que é a saúde”, explica a profissional, citando a Declaração Mundial dos Direitos Humanos publicada em 1946, que define que a saúde deve ser socialmente referenciada.

“Hoje, em um contexto mundial, temos passado por uma influência do Banco Mundial, principalmente nos países pobres e subdesenvolvidos, para que esses países adotem a flexibilização dos investimentos em saúde, fazendo uma redução de investimento do Estado enquanto política pública, para que haja uma substituição de uma política privada”, continua.

“Estamos passando por uma desigualdade de acesso e cada vez mais populações pobres, quando não morrem por falta de acesso tendo que gastar do próprio bolso para custear os atendimentos, exames médicos e medicamentos, estão passando por um empobrecimento de seu nível de renda”, critica.

Dividido em três partes, o documento também dá voz para lideranças de saúde de países com sistemas que carregam sucessivos cortes de verba destinados para a área, e por isso, encontram-se fragilizados em meio à pandemia.

Índia

resposta da Índia à covid-19, por exemplo, país que decretou a maior quarentena da história, só não foi menos robusta devido ao compromisso dos mais de 900 mil trabalhadores da rede Ativistas Sociais de Saúde Credenciados (Accredited Social Health Activist – ASHA, na sigla em inglês). Com função semelhante aos agentes comunitários de saúde, a categoria composta majoritariamente por mulheres se tornou linha de frente no combate ao coronavírus.

Sem Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) suficientes e sem a remuneração adequada pelo governo de extrema-direita de Narendra Modi, as trabalhadoras estão constantemente expostas aos vírus ao monitorar a propagação da doença. Frente ao avanço da doença no país e descaso das autoridades, se viram obrigadas a improvisar sua própria proteção.

Segundo o dossiê, as trabalhadores não recebem apoio do Estado e são tratadas como voluntárias. Surekha Rani, secretária Geral do Sindicato dos Trabalhadores da ASHA, afirmou que há anos a entidade de classe atua na defesa dos direitos dessas profissionais, com mobilizações e greves frequentes para que os salários sejam garantidos.

Hoje, diante da pandemia que se prolifera em ritmo acelerado, Rani lamenta que “as trabalhadoras da ASHA estejam tristes e desmoralizadas”. “Elas acreditam que somos as responsáveis por quebrar a cadeia de infecção e, no entanto, os funcionários do governo não estão ouvindo nossos problemas”, disse, aos pesquisadores do Tricontinental.

África do Sul 

O descaso com os trabalhadores da saúde também é registrado na África do Sul. Em resposta à pandemia, Cyril Ramaphosa, presidente do país, anunciou um pacote emergencial de 500 bilhões de rands (aproximada mente R$ 145 bilhões), moeda sul-africana em abril. Porém, conforme o dossiê, a medida não fornecia nenhum recursos justamente para os profissionais de saúde que atuam para conter a covid no país.

De acordo com Lerato Madumo, presidente do Sindicato Indaba de Jovens Enfermeiras (YNITU, sigla em inglês), os trabalhadores também não possuem testes amplos disponíveis e EPIs, e, após anunciarem que entrariam de greve caso não tivessem suas reivindicações atendidas, foram ameaçados pelo governo. O presidente respondeu estariam cometendo um crime segundo a Lei de Gerenciamento de Desastres, aprovada em 2002.

Madumo refuta a tentativa de criminalização e evoca a Lei de Segurança e Saúde Ocupacional, da década de 1990. “Não se trata de um ato criminoso, mas de dizermos que nosso governo é que está cometendo um crime contra a humanidade. Enfermeiras são seres humanos. Você não pode pedir a um soldado para lutar em uma guerra e não dar proteção a ele como coletes à prova de balas; simplesmente não está correto. Se a linha de frente continuar doente significa que, no final da pandemia, teremos um sistema de saúde que sequer terá trabalhadores da saúde”, observa Madumo, em relato publicado no documento do Tricontinental.

Nosso governo é que está cometendo um crime contra a humanidade.

O dossiê ainda aponta que, na África do Sul, 84% da população é atendida pelo setor público enquanto o setor privado – que atende apenas os 16% restantes – contrata 60% dos profissionais disponíveis, sobrecarregando o atendimento público.

Brasil 

Os cortes do orçamento na saúde têm sido frequentes no Brasil, que segundo dados mais recentes, soma mais de 37 mil mortes causadas pela doença respiratória. Sob o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), o país ultrapassou a Itália e agora ocupa a terceira posição na lista de nações que mais perderam vidas para a pandemia.

Apesar da existência do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos mais fortes sistemas do mundo, o sufocamento protagonizado pelo governo Michel Temer (MDB) e pelo atual presidente, compromete a resposta do Brasil à pandemia. Profissionais também relatam trabalhar com proteção insuficiente diante da ameaça de contaminação.

“Nossa condição de resposta agora tem sido, de fato, uma consequência da política dos últimos anos.Temos passado por um desinvestimento, por uma redução no aporte de dinheiro com o SUS recebe. Sentimos isso hoje quando nos deparamos com a necessidade dos leitos de UTI, quando nos deparamos com comunidades nas quais havia uma Unidade Básica de Saúde da Família e agora não existe mais”, comenta Nathalia Santos, acrescentando que, mesmo sendo um foco mundial da pandemia, o Brasil é um dos países que menos testam os pacientes com sintomas respiratórios.

A integrante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares frisa o dano causado pela emenda do Teto de Gastos, que limitou o investimento na área da saúde por 20 anos, o que aprofundaria ainda mais as desigualdades dentro do próprio SUS.

Por ser um sistema tripartite, que recebe financiamento da União, dos Estados e dos Municípios, há uma grande diferença geográfica no país, já que regiões do Norte e Nordeste não possuem tanta capacidade de investimento público como o estado de São Paulo, por exemplo.

A integrante da Rede de Médicas e Médicos Populares destaca ainda que segundo a Constituição Brasileira, o acesso à saúde é dever do Estado e um direito de todos. Exatamente por isso, em meio à pandemia, a utilização dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da rede privada, defendida pela campanha Leito para Todos, se faz a cada dia mais urgente.

Quando olhamos para a fila única, estamos tratando cidadãos com pesos iguais independente de seu poder de compra.

Conforme informações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Ministério da Saúde, 75% dos brasileiros não têm acesso a plano de saúde, enquanto metade dos leitos de UTI do país, cerca de 15 mil, pertencem a estabelecimentos particulares.

Mais do que uma política emergencial, para Santos, o uso dos leitos de UTI privados é o reconhecimento da saúde como um direito constitucional.

“Um cidadão que hoje não tem convênio médico e não tem plano de saúde, tem o mesmo direito de ter sua vida protegida como quem paga um plano de saúde. Quando olhamos para a fila única, estamos tratando cidadãos com pesos iguais independente de seu poder de compra. O que é um grande avanço quando olhamos pra tentativas contates de mercantilização da saúde, deixando quem pode pagar com mais acesso e quem não pode sucumbindo como vemos falando”, comenta ela.

Argentina 

contexto atual da Argentina é o de um país recém saído do governo de direita de Mauricio Macri (2015-2019) também é retratado no dossiê. Durante o mandato de Macri, de acordo com o Ministério da Economia, o governo cortou em 22% o orçamento de saúde, tornando a situação insustentável.

O estudo faz ainda um resgate sobre os impactos da política do Banco Mundial na maioria dos países da América do Sul, que ao invés de realizar uma cobertura universal de saúde, incentivava a criação e o fortalecimento de sistemas privados.

Principalmente, Chile, Colômbia, Peru e Equador, que viram o aumento de parcerias público-privadas e o crescimento dos convênios de saúde com fins lucrativos, hoje enfrentam duras consequências. O sistema equatoriano, por exemplo, entrou em colapso total, com corpos de vítimas fatais acumulados nas ruas.

A Argentina, que estabeleceu na Constituição Nacional de 1994 que a saúde é um direito essencial, também sofreu com a pressão do Banco Mundial na década de 90. O documento do Tricontinental aponta que as instituições públicas também foram sucateadas e a assistência médica passou a depender de fundos privados, gerando um sistema desigual.

A atuação de governos progressistas de 2003 a 2015, com o auxílio de organizações de classe, conquistou importantes avanços na defesa do direito à saúde. Feitos que voltaram a ser atacados com Macri, que cortou orçamento para programas essenciais voltados para o combate e tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, doenças transmitidas por vetores, como dengue, chikungunya e zika, além da descontinuidade de vacinas.

Atualmente, o governo progressista, liderado pelo presidente Alberto Fernández, que assumiu o comando do país em dezembro de 2019, tenta lidar com as consequências da lógica neoliberal adotada no país.

O que os trabalhadores querem?

Na última parte do dossiê, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social publica uma lista baseada com as reivindicações dos sindicatos dos trabalhadores da área da saúde em diversas partes do mundo. Entre elas:

– Priorizar imediatamente a capacidade de todos os serviços de saúde no tratamento de casos graves da covid-19, sejam eles públicos ou privados.

– Prestar assistência especial a regiões e comunidades severamente afetadas pela pandemia.

– Aplicar políticas como o isolamento para conter a propagação do vírus e implementar subsídios e políticas necessárias para permitir que os trabalhadores, principalmente os informais, obedeçam à quarentena de uma forma digna.

– O fornecimento amplo de EPIs e máscaras de alta qualidade, além de outros equipamentos necessários.

– A ampla testagem do vírus entre os profissionais de saúde e o reconhecimento do direito dos trabalhadores de se afastarem do trabalho devido a um risco iminente à sua saúde ou vida, se assim decidirem, com base nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho 155 e 187.

Confira o estudo e os outros itens na íntegra.