*Por Antônio Claret Fernandes, para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB-Nacional)

São 12 horas e 55 minutos. Dia 25 de janeiro de 2019. Hora do almoço na Mina do Córrego do Feijão, no Município de Brumadinho, que funciona em três turnos, opera 24 horas por dia, sete dias por semana. O restaurante está movimentado! Trabalhadores da Vale e terceirizados estão ali, alimentando-se, recuperando suas energias para continuar vendendo força de trabalho à mineradora.

Uma pequena parte do seu salário se destina à sua reprodução, abrangendo, em tese, tudo que é necessário à sua família, e a grande parte vai para a empresa como lucro.

A diferença entre o que fica com o empregado, que hipoteca sua vida – correndo risco -, e o que vai para o cofre do patrão é descomunal, em especial no mundo minerário. Na Samarco, testa de ferro da Vale, cuja barragem se rompeu no dia 5 de novembro de 2015, em Mariana, cada operário produzia um milhão por ano, ficando, pra si, apenas cinquenta mil reais em média. Essa mais valia é diretamente proporcional ao investimento tecnológico para o aumento da produtividade. A fina flor do capitalismo, como é o caso da Vale, pode surrupiar quantia ainda maior, distribuída sob a batuta de seus acionistas majoritários. A despeito de conselhos e outros mecanismos de controle, eles é que têm poder real de mando.

Os números são reveladores. No último período, as ações da Vale subiram em torno de 11% graças ao recorde sobre recorde na produção. Essa confortável e voraz tem relação direta com o rompimento em Brumadinho.

Qualquer acumulação de riqueza nada mais é do que apropriação de trabalho alheio.

Em Minas Gerais, rica em minério, mas também em culinária, o momento da refeição é quase um ritual sagrado. O tempo acelerado da empresa não quebra, por completo, esse hábito. A pessoa se alimenta de arroz, de feijão, mas, também, do encontro, da troca de palavras. No meio operário, somam-se ao cardápio as piadas, as brincadeiras e o encontro dos diferentes setores. A refeição vira, por assim dizer, um momento de descontração, de relaxamento.

É nesse clima que, sem toque de sirene nem aviso, o crime de Brumadinho surpreende os trabalhadores. O rito se esfarela. As coisas se invertem. Quem ingere alimento para restaurar-se é, repentinamente, engolido pelo apetite insaciável da Vale, em lama, que desce, destruindo tudo.

Primeiro o barulho ensurdecedor de um monstro voando campo afora, acima da área administrativa e do refeitório. A explosão nas paredes. O telhado, que vem abaixo. Mesas, cadeiras, panelas, bandejas, comida, casas de moradores da região, tudo enquanto é objeto se torna, em segundos, frágil folhinha de papel em meio à violência pesada do rejeito de minério.

A gritaria geral, de pessoas que se debatem em meio a entulho e lama, vai cedendo lugar, aos poucos, a um silêncio. As vozes humanas se calam. Somente a dor fala. Somente a estupidez do lucro criminoso se impõe. Trabalhadores, responsáveis por toda a riqueza acumulada, que lhe é roubada, e moradores, legítimos ‘donos’ dos bens naturais, agora se acham ali, na lama densa, batidos, machucados, quebrados, ao desmaio, à morte. Espalham-se no poder caótico daquela montanha ligeira e movediça.

Um que outro escapa. Porque não vem nesse dia. Porque, pela troca de turno, almoça mais cedo. Porque está fora de casa. Mas mesmo quem escapa se sente mutilado vendo a categoria despedaçar-se ou um conhecido desaparecer.

Além dos operários da Vale, diretos e terceirizados, o rejeito criminoso atinge famílias que moram nas comunidades próximas e pessoas, turistas ou não, que se acham na região. A lista de desaparecidos da empresa não inclui essas pessoas, por isso o número pode ser muito maior.

O passar das horas vai revelando a dimensão catastrófica do crime, apelidado, mais uma vez, de tragédia. Um volume de 12 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério. O Corpo de Bombeiros informa no domingo (27) que, até o momento, 58 corpos foram encontrados, 19 oficialmente identificados, 192 pessoas resgatadas e que permanece uma lista de 305 pessoas desaparecidas.

As empresas cometem o crime, mas o salvamento se dá por pessoas hábeis, semelhantes à pilota Karla, com a estrutura do Estado e a força de tantos voluntários.

O ambiente parece acossado por tsunami. Imagens muito fortes! Enormes caminhões amontoados. Um carro completamente amassado feito uma latinha qualquer. Três maquinas de trem com mais de uma centena de vagões soterrados. Ônibus com trabalhador entupido. Linha férrea com dois espessos pilares de concreto desmoronados. Montanhas de lama densa pelo Córrego do Feijão abaixo, por 7 km. Nalguns trechos chega a 15 metros de profundidade. A pousada Nova Estância, localizada a 5 km da barragem, completamente varrida, sem deixar nem marca. A informação é que havia pelo menos 35 pessoas nela. E, por fim, um vale marrom-vermelho despejado no Paraopeba de sangue ferruginoso.

O impacto ambiental por ora não chama a atenção pela justeza da prioridade das vítimas humanas, mas o Paraopeba, agora contaminado, vai descendo, gemendo. A lama percorre 46 km de sexta a domingo. Deverá andar 310 km até a Usina Hidrelétrica de Retiro Baixo, em Pompeo. O percurso total será próximo de 500 km, até o São Francisco, à altura da hidrelétrica de Três Marias. Tudo que é vida aquática nesse trecho e abaixo pode sofrer muito ou morrer.

Se o crime da Vale em Fundão fez a Bacia, que era doce, tornar-se amarga, agora o crime de Brumadinho zomba, com seu impacto social e ambiental, do imenso rio, que recebe nome de santo, o cantador da vida modesta, que denuncia a acumulação como roubo.

Esse crime é uma cuspida na cara do povo brasileiro e de São Francisco.

Autoridades do Brasil e do mundo se chocam e se movem. Todas se mostram preocupadas e solidárias. Algumas querem mesmo ajudar. Mas que ninguém se engane! Boa parte é teatro! O caso de Mariana é emblemático. E o histórico de algumas delas mancha suas mãos de sangue, co-participantes desse novo crime, pois defendem afrouxamento no protocolo de licenciamento ambiental.

Há pelo menos duas conexões diretas entre Fundão e Brumadinho: o aceleramento da produtividade e a impunidade, que solaparam a barragem da Mina do Córrego do Feijão.

O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, concede entrevista lá da sede da empresa, no Rio de Janeiro, longe do perigo. Na sua posse, o lema foi ‘Mariana nunca mais!’. Agora pede desculpas aos atingidos e à sociedade. A Justiça bloqueou, até agora, 11 bilhões da empresa. E ela sofre uma multa de 350 milhões. Tudo isso é nada! São papéis! Cada vez fica mais claro que atividade mineraria em larga escala e moradores não cabem no mesmo espaço.

Entre as vítimas, algumas chamam a atenção. Um macaco enlameado dos pés à cabeça aparece saltitando no telhado, correndo de um lado para o outro, buscando uma explicação. A vaca, deitada na lama, entrega os pontos. Não tem mais forças.

Gritos ecoam pela floresta que restou, até de madrugada. Repetem-se os nomes diversas vezes. Quando ele se faz ouvir é sinal de vida. Mas quando, após o eco, impõe-se o silêncio sepulcral, é porque a vida se foi.

As centenas de parentes procuram informação. Cada minuto é uma eternidade. Reclamam muito do sumiço da Vale e das informações desencontradas. Correm ao João XXIII, um dos 5 hospitais colocados de plantão em Belo Horizonte. Vão ao IML com uma foto, um objeto qualquer, pois a brutalidade da lama desfigura o corpo. Juntam-se no ponto de encontro. Ajudam-se, mutuamente. Olham as listas, tanto dos desaparecidos quanto dos mortos, correndo o dedo na folha, passando nome por nome.

Voluntários chegam de diferentes regiões. Militantes no Movimento dos Atingidos por Barragens se somam na prestação dos serviços necessários.

O MAB vem acompanhando, de perto, barragem de rejeito de minério da CSN em Congonhas. Mais uma bomba relógio sobre o Paraopeba que, percorrendo 530 km, passando por 35 municípios, deságua no Rio São Francisco.

Em Congonhas, são cinco bairros abaixo muito próximos da barragem. Só no Residencial, a apenas 200 metros desse monstro, moram mais de 3 mil pessoas. Os simulados que ocorrem por lá, semelhantes ao realizado, recentemente, em Brumadinho, têm a intenção de produzir a formalidade para garantia dos interesses da empresa, sobretudo a ampliação de seus negócios e sua eventual defesa. Fundamentalmente, não pensam na proteção do povo. Se tudo não fosse mero ajeitamento, moradores e atividade mineradora não caberiam no mesmo espaço. Na perspectiva atual, os crimes tendem a perpetuar-se.

 

Antônio Claret Fernandes é militante do MAB e padre da Arquidiocese de Mariana, Minas Gerais.